Quem quer ainda saber do Beaujolais nouveau? Quando é que deixámos de gostar dos franceses! Quando é que eles se tornaram impertinentes e nos começaram a chatear de morte? Aqui sim, Herr Schulz, começa o declínio da Europa: andar Portugal a vender-se no Oriente ou em África é só consequência. A causa é já não ser Paris a luz do mundo e que já não sucumba a boca à tentação de um reblochon, de um macio brie.
Antes vinham americanos a Paris: uns dançavam, outros pintavam. Para vender a América ao mundo, Hollywood vestia-se a imaginário parisiense. No filme de Minnelli em que estou a pensar, Gene Kelly é o nervoso americano perfeito. Ágil, ingénuo, sedento do romantismo francês e de séculos de patine. Nesse filme, com a dançada elegância de Gene Kelly e Leslie Caron, com a americaníssima música de Gershwin, toda a opulência visual está impregnada de Cézanne ou Toulouse–Lautrec. An American in Paris canibaliza a cidade que aperta o Sena. O cinema de Minnelli roubou séculos de França: com boas intenções, claro. Mas o que levou, nunca mais devolveu.
O roubo começara a preto e branco. O alemão Lubitsch trouxe a Paris a sueca Greta Garbo. Reparem, já dois europeus eram americanos com guia de marcha da Metro-Goldwyn-Mayer, estúdio que tinha mais estrelas do que as estrelas que o céu tinha. Ninotchka era uma comédia: um alto quadro do Partido Comunista da URSS (lembram-se?) vinha negociar com o capitalismo. A Paris. O alto quadro era a Garbo, chamava-se Ninotchka, e mandava o Partido às urtigas por umas evanescentes bolhinhas de champagne. Pela primeira vez, a Garbo ria-se num filme. A França tinha essa virtude: entontecia, libertava os sentidos, o gosto. A França era uma alegria culta.
Outro filme, Gigi, ensinando a uma adolescente as amorais delícias dos afectos, fez a educação sentimental da América. Aprendiam-se as regras do coração, que é não ter nenhumas mas com ordem, dançando numa Paris saída da pintura impressionista. A doçura invadia os corpos. Triunfava um “se há pecado, pequemos!” que logo Paris rezaria por nós nessa noite. Chevalier descia as Tuileries a agradecer a Deus as little girls. Cantava em inglês e parecia que era tudo francês.
Hoje, ninguém abre a boca de espanto com Saint-Tropez: dormi no quarto do Byblos onde dormira a Naomi Campbell e já era um quarto americano. Mesmo a Bardot, deita-se com uns cães velhos e as pulgas deles como se fosse o Al Gore. E já não há uma francesinha que seja a mais bela para se ir dançar. Nem um escritor maldito como Lautreámont, nem o aroma das flores do mal.
Com a França era encanto e transgressão. Sem a França? Bah, corporação e droga. Algum dia voltaremos a gostar dos franceses? Melhor, quando é que foi a última vez que os franceses ganharam a Eurovisão? (O que é a Eurovisão?)
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
msfonseca@netcabo.pt
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia