Manuel era um morto

Quando conheci Manuel S. Fonseca ele era um morto e nada me indicou o bem querer que chegaria. Idades, amigos, hábitos, afazeres, nacionalidades diferentes. Escrevia (sim, os mortos tem muito a dizer) em uma língua que eu sabia ser a minha, tão íntima, mas tão estranha que às vezes eu pensava se era ela ou eu que éramos outra.

Poderia dizer o Manuel em adjetivos e não seria árdua tarefa: de inteligente a generoso, passando pelo sagaz, muitos lhe servem. Mas não quero. O Outro é nosso quando o dizemos, o Manuel que narro não é ele mesmo nem de nenhum mais. É o que aprendi, perturbou-me, animou-me, esclareceu-me em tantas palavras lidas, e-mails idos e recebidos e naquilo que, intangível, vai se chamando afeto. Pois é isso: o meu Manuel. O meu Manuel é em substantivos e verbos, em matéria e ação. Assim, em peças de um quebra-cabeça: shorts brancos de Jean Seberg, um livro de Faulkner, uma ária em voz de Danielle De Niese, um banho de chuva em Luanda, uma lista de rubros prazeres, maçãs que nos caem na cabeça antes dos dezoito. E em verbos é o que ele me faz: alegrar-me, comover-me, refletir, chorar, lembrar. Querer bem. Querer muito. O Manuel sempre e sempre me faz querer ser mais e melhor.

A escrita do Manuel é a mais instigante indicação da civilização que eu sempre ansiei sem nem saber nomear: ele sabe belezas. E, generoso, partilha memórias suas para que as possamos gozar. O meu cinema é, em letras suas, ainda mais meu.

O Manuel ensinou-me a mortalidade: não a fria e impessoal finitude que nos virá a todos e parece apagar as vontades, mas a tépida escolha de saber dizer “fim” e nisso dizer-se sujeito do seu desejo. Não há um jeito de dizer obrigada, digo-lhe: gosto muito – e ele há de saber ler o que calo de gratidão.

Quando conheci o Manuel ele era um morto, eu disse. Não sei se a ele, mas hoje me conheço mais e digo: amigo. Manuel S. Fonseca e tantas vezes se brincou de nomear o S. Não sabiam todos o que eu sei: o Manuel é o meu Saci.

* Luciana Nepomuceno é professora da Universidade Federal Rural do Semi-Árido, em Mossoró, na área de Psicologia e Metodologia Científica, é a autora não de um ou dois blogs, mas quatro: Borboleta nos Olhos, Olhos da Borboleta, Eu Sou a Graúna, Outras Borboletas. Nas horas vagas, que de alguma forma encontra, colabora com um quinto blog, Estrangeiros na Terra.

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