Meu amigo estava em Paris, hospedado em um hotelzinho bem barato (na comparação com todos os outros, é claro), quando recebeu um telefonema de Marcus Pereira, o publicitário que viria a ser um dos melhores produtores de discos do Brasil. Conheciam-se do Jogral, a casa de música brasileira da Galeria Metrópole, aquela coisa mágica da Avenida São Luís com a Praça Dom José Gaspar. Meu amigo era frequentador assíduo; Marcus era um dos sócios, juntamente com Paulo Vanzolini, talvez também Aluízio Falcão.
Suzana, então namorada do meu amigo – depois mãe de seus filhos -, havia pedido a Marcus, ao saber que ele iria a Paris, que levasse algumas coisas de que o namorado certamente estava precisando.
E então se encontraram no hotel elegante em que o publicitário estava hospedado. Gentil, generoso, Marcus convidou o rapaz para jantar, e foram a um bom restaurante na região de Champs-Élysées.
Lá pelas tantas, a figura diz: – “Vem cá, ô Marcus, você viu aquele filme Trinta Anos Esta Noite? Pois é: estou fazendo trinta anos esta noite.”
Marcus Pereira, o sujeito responsável pelo primeiro disco só de músicas de Paulo Vanzolini, pelo primeiro disco de Renato Teixeira, pela série Música Popular do Sul, do Nordeste, do Norte, do Sudeste, fez sinal para o garçom:
– “S’il vous plait! Champagne!”
Ah, meu, que história!
Melchíades me contou o caso em um longo telefonema em que começou dizendo que ia falar duas coisas rapidamente – e aí, claro, passeamos pelos mais diversos assuntos, de Maurice Ronet, o ator daquele filme que marcou gerações, e, como lembrou o Melchíades, era tão belo quanto o Alain Delon, com quem trabalhou em outro grande filme daqueles anos 60, O Sol Por Testemunha/Plein Soleil, a Zé Celso Martinez Corrêa, que também estava em Paris naquela mesma época do aniversário de 30 anos dele, dezembro de 1967, e com quem viu, num cinema da região de Pigalle, La Chinoise de Godard (que vi em 1968, meu primeiro ano de São Paulo, no Cine Belas Artes).
De Maurice Ronet a Zé Celso, passando, entre outros temas, por Chico Buarque. Chico Buarque era um dos dois assuntos sobre os quais ele dizia que iria falar: sugeriu que eu desse uma olhada no show Caravanas, que está no YouTube; – “Servaz, é um horror!”, disse ele. – “Como é possível que o Chico tenha feito uma coisa tão ruim, siô?”
Ah, sim, porque o cara não apenas tomou champagne com Marcus Pereira na região da Champs-Élysées e viu La Chinoise em Pigalle com o Zé Celso, como também é amigo de Chico Buarque de Hollanda! E isso desde a época em que ele ainda se assinava assim, com o de Hollanda que depois abandonou, e nem tinha chegado a ser a quase unanimidade nacional. Conheceram-se ali por 1965 – um ano antes de “A Banda”, portanto –, quando o mineiro do Araxá fazia Direito na PUC e o carioca de nascimento criado em São Paulo fazia Arquitetura na USP, e criava as melodias para a transformação do poema de João Cabral de Mello Neto em peça de teatro, a peça que inauguraria o Tuca, o teatro que viria a ser um símbolo da cultura brasileira e, naqueles tristes tempos, também um símbolo da luta contra a ditadura. Um compôs, o outro trabalhou como ator em Morte e Vida Severina. O estudante de Arquitetura deu ao de Direito o apelido de Capitão – que ele viria a rejeitar, assim como o amigo rejeitou o último sobrenome.
Muitíssimos anos mais tarde, a ditadura já derrubada, Melchíades teve uma idéia de pauta seguramente daria uma boa capa, vendável, na revista Afinal, em que trabalhávamos, junto com uma porção absurda de talentos. Uma entrevista intimista com o Chico, uma entrevista à la O Pasquim – solta, sem qualquer cerimônia, na boa, um monte de gente fazendo perguntas, bebendo umas coisinhas. Não dá para lembrar, é claro, mas Melchíades deve ter dito algo assim: Xá comigo que eu falo com o Chico.
Passar um dia inteiro, um sabadão, com um dos meus maiores ídolos, um dos maiores artistas do mundo, desde o primeiro encontro na casa dele, na Gávea, passando por uma tarde no seu campo de futebol, o Polytheama, prosseguindo com um jantar no Leblon, para finalmente ligar o gravador tarde da noite, com todo mundo já um tanto bebinho, foi uma das mais fantásticas experiências dos meus 35, 36, 37 anos, sei lá, de jornalismo.
A entrevista que publicamos na Afinal, com bela foto na capa, com a abertura escrita por mim foi reproduzida no site oficial do Chico – quando vi isso, fiquei absolutamente orgulhoso. Seguramente aquela edição da Afinal deve ter tido uma venda em banca melhor que o normal. Mas não é isso que importa…
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Aliás, o que importa, num suelto – um texto mais suelto do que uma crônica, um texto que não pretende dizer nada importante, significar nada, é apenas um texto suelto?
Comecei o texto apenas porque não dava para não escrever sobre aquela história dos trinta anos esta noite do Melchíades em Paris com o Marcus Pereira…
Mas, diabo. não sabia onde o texto iria parar…
Essa é a questão dos sueltos. Se você se solta, se seus dedinhos se soltam em cima do teclado, você não sabe onde vai dar.
Quando o Mel contou a história do champagne em Paris com o Marcus Pereira, falou do Jogral, e acrescentou que iria no dia seguinte à festa de 90 anos do Aluyzio Falcão, lembrei de várias historinhas minhas que têm alguma coisa a ver com tudo isso.
Os melhores ficcionistas são capazes de misturar várias histórias de pessoas, fazer um intrincado conjunto de trajetórias. Uma tecelagem. Um American Quilt, como no filme de Jocelyn Moorhouse. Uma colcha de retalhos, como a gente diz em Minas, A Tapestry, como nos mostrou Carole King.
A vida faz isso com mais brilhantismo que os melhores ficcionistas.
Ali pela mesma época em que Marcus Pereira pagou um champagne para o Melchíades pelos seus 30 anos esta noite, eu, que não peguei o Jogral na Galeria Metrópole, e ainda era um capiau do interior, fui levado por uma moça linda demais da conta para o Cine Metrópole – e aquele momento foi, creio eu, determinante para que eu escolhesse esta cidade para viver. Depois, seria no Jogral, já instalado no início da Avanhandava, que o capiau se envolveria com a namoradinha de um amigo dele.
No começo dos anos 70, fiz uns frilas para a Marcus Pereira Publicidade – algumas entrevistas para servir de base para os trabalhos deles. Quem me passava as pautas era o Aluízio Falcão, que na época era o braço direito do próprio Marcus, uma espécie de vice-diretor da agência. Quando foi criada a Discos Marcus Pereira, Aluízio era o diretor artístico.
Bem mais tarde, nos anos 80, reencontrei Aluízio Falcão, então diretor do Estúdio Eldorado. Foi na época em que escrevi coisas como “crítico de música” no Jornal da Tarde. Um dos maiores elogios que ouvi no tempo em que desempenhei o papel de “crítico de música” foi dele. Alguma coisa tipo assim: “Ele de fato gosta de música, e usa muita informação no que escreve”.
19 e 20/1/2024
Quando acabei de ler o texto, saiu espontaneamente da minha boca um “muito bom”. Realmente, são belas memórias do Melchiades, com Chico e tudo o que veio, e as suas, nessa atmosfera preciosa.
Delícia de texto, Servaz! Conteúdo e forma perfeitos! Parabéns!!!
Muito legal esse texto que traz o papai como elo central, seu aniversário de 30 anos, Paris, Marcus Pereira, Chico Buarque, até a mamãe foi citada.