Algumas dezenas de milhares de pessoas deram um belíssimo presente a Ney Matogrosso, no Autódromo de Interlagos, no final de uma bela tarde de domingo de início de setembro. Trataram-no bem demais, com admiração, respeito, embevecimento – diferentemente, parece, do que havia feito o público da abertura do Rock in Rio número 1, em 1985. E esse grande artista, dos maiores da música brasileira, nosso melhor produto, demonstrou estar absolutamente feliz com o presente.
As expressões de profunda alegria de Ney diante daquele mar de gente no The Town, a imensa maioria nascida depois do final da banda Secos & Molhados, quase meio século atrás, foram das coisas mais maravilhosas desse show magnífico, especial, fora de série, extraordinário.
Assim como foi maravilhoso ver esse sujeito de 82 anos de idade em absoluta forma física, o corpo belíssimo, as carnes rijas e tudo maleável, flexível, quase como se tivesse os 10 anos da minha neta que tem braços e pernas que parecem de borracha.
Melhor que a forma física é apenas a qualidade da voz.
Ney Matogrosso sempre foi uma das mais belas vozes deste país de andorinhas e sabiás, de Aracy Cortes a Roberta Sá, de Mário Reis a Emílio Santiago. Tem um timbre abençoado por Deus e bonito por natureza. Mas, diabo, como o sujeito consegue ter essa voz de diamante aos 82 anos de idade? Gente da geração dele (e, meu Deus, que geração) já não conseguia, nos últimos anos, chegar perto do que havia sido capaz de fazer, Milton Nascimento e Gilberto Gil que o digam.
A voz de Ney, no palco The One do festival The Town, neste ano da graça de 2023, era quase a mesma de quando ele lançou seu primeiro disco solo, pós Secos & Molhados, Pássaro, de 1975.
Como é que pode, meu?
Um público de dezenas de milhares de pessoas, na imensa maioria jovens, em um festival de rock’n’pop, presenteando um artista veterano (e bota veterano nisso…) com uma recepção digna de rei. Dezenas de milhares de vozes, entoando, em coro, pausadamente, como numa passeata: “Ney Mato-gros-so”!
Um artista em momentos de pura felicidade diante de um mar de gente jovem que o tratava maravilhosamente bem.
Um sujeito de 82 anos que dançava e rebolava (bem pra cacete, diga-se) sem parar num palco maravilhoso.
Um cantor de 82 anos com uma voz esplêndida, magnífica.
E, at last but not at least, uma seleção de canções absolutamente fantástica.
Este velho apaixonado por música aqui não sabia direito o que mais o impressionava, de tudo isso aí. Mas acho que a tal da set list que Ney elaborou para este show – baseado no espetáculo Bloco na Rua, que vem apresentando já há algum tempo – foi um das coisas mais impressionantes, mais inesperadas, mais desconcertantes, mesmo.
Show em festival para dezenas de milhares de jovens – e portanto não apenas para os fãs de carteirinha do artista – costuma ter uma receita infalível: sucessos. Os maiores sucessos. The greatest hits. Pode até ter alguma canção um pouco mais suave – mas é exceção. Tem que ser sucesso, e tem que ser barulhento, alegre, pra cima, agitado. Rock’n’roll, pauleira.
Esse filho da mãe desse Ney de Souza Pereira cometeu o pecado terrível de subverter as regras, as normas, de remar contra a maré, de desobedecer ao mandamento de que vence no palco quem repete.
Sim, claro, a set list que ele criou para o show da grife Roberto Medina, transmitido ao vivo não por um mas por dois canais da TV paga e mais a plataforma poderosa da GloboPlay, trouxe Rita Lee – mas não as manjadérrimas “Lança-Perfume” ou “Mania de Você”, mas o manual de transgressão que é “Jardins da Babilônia” e a bem menos tocada “Corista de Rock”.
Teve Paralamas do Sucesso – mas não “Lanterna dos Afogados”, “Alagados” ou “Óculos”, mas a complexa “O Beco”.
Teve Raul, claro – toca, Raul! Óbvio que teria que ter Raul. Até Bruce Springsteen, quando passou por este paisão grandão bem ao Sul do Rio Grande cantou e tocou Raul. Mas não foi “Ouro de Tolo”, “Al Capone”, “Gita”, “Eu Nasci Há Dez Mil Atrás” – e sim “A Maçâ”. Quer saber? Este velho ouvinte de MPB aqui, que já até escreveu “crítica de música” para o Jornal da Tarde na época em que o Jornal da Tarde era f&$dinha não se lembrava de A Maçã.
Da mesmíssima forma, teve Cazuza – Ney sempre foi apaixonado por Cazuza, assim como qualquer pessoa de bom gosto deste país. Mas não das mais conhecidas, e sim “Poema”, uma canção suave, de letra buriladíssima – e isso no bis, tá?
Ney teve a coragem de abrir seu show com uma canção conhecida, é verdade – só que de autoria de um dos mais malditos de todos os malditos da MPB, Sérgio Sampaio, aquela maravilha que é “Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua”.
A quinta música foi uma conhecida, que até tocou em novela da Globo, mas bem lá atrás, quando a imensa maioria das pessoas presentes ali em Interlagos ainda não havia chegado à adolescência, “Pavão Mysteriozo”, de Ednardo, que apareceu no início dos anos 70 como um dos membros do Pessoal do Ceará.
Na sétima música, o filho da mãe fez meus olhos marejarem -e, diabo, não sou muito de ter os olhos marejados. Os da Mary também marejaram, mas ela é como o narrador da canção de Zeca Baleiro, qualquer beijo de novela a faz chorar.
Tenho a mais absoluta certeza de que, lá da nuvem dele (sim, sim, comunista desde criancinha também vai pro céu), Pablo Milanés vai chorar três dias seguidos de pura emoção quando os anjos mostrarem para ele o vídeo de Ney cantando “Yolanda” para dezenas de milhares de pessoas em São Paulo.
Depois de “Yolanda”, achei que não tinha mais como Ney, esse fdp, me surpreender.
Pois em seguida o cara cantou “Postal do Amor” e “Na Ponta do Lápis”.
Ahnnn? Como? O que mesmo?
Pois é. Em um festival de rock’n’pop, com muito rap e hip-hop, em que a lei manda tocar sucessos, grandes sucessos, os maiores sucessos, Ney Matogrosso cantou “Postal de Amor” e “Ponta do Lápis”.
Eu poderia apostar que essas duas são das canções menos conhecidas do repertório de Ney.
Foram gravadas em um compacto simples da Continental, então a única brasileira entre as gravadoras do país, por um Ney iniciante na carreira solo e um cearense de voz de taquara rachada que havia lançado o primeiro álbum em 1973 na Philips e brigado com a gravadora e passado para a empresa de capital brasileiro.
(Não vai aqui qualquer tipo de defesa do capital nacional versus capital dos países ricos, imperialistas. Não, de forma alguma. Só quis lembrar dados da realidade, sem juízo de valor. E a verdade é que, naquela época, anos 1970, a Continental era a gravadora que mais investia em artistas novos, como, só para dar um exemplo, o grande Walter Franco.)
O taquara rachada, um tal de Raimundo Fagner, foi com toda a certeza o responsável pela escolha das duas canções que aquela dupla cantaria no compacto simples. “Ponta do Lápis” é de Clodoaldo e Rodger Rogério, outro dos três do Pessoal do Ceará de Ednardo. “Postal de Amor” é de Fagner-Fausto Nilo-Ricardo Bezerra.
Muito diferentemente da quase totalidade daquelas dezenas de milhares de pessoas em Interlagos, conheço de cor e salteado, como diria minha mãe, as deliciosas letras dessas duas músicas. Eu tocava o compacto simples direto e reto no meu caro, competente toca-discos BSR no apartamento da Rua João Moura, no ano em que minha filha nasceu.
A letra de “Postal do Amor” termina de um jeito que permite que Ney brinque com o machismo entranhado não apenas na sociedade brasileira, mas em todas as partes do mundo. A última estrofe é “O mar vai e volta / Com o gosto / Do licor que ficou da tua boca / Do suor que ficou na minha boca / Vai deixando minha parda voz, minha parda voz de louco… Louca, louca, louca, louca muito louca!”
Uma óbvia remissão a bicha louca. Bicha lôka.
***
Ah, meu Deus do céu e também da Terra, tem isso também, teve demais disso no show diante de milhares e milhares de up-turned faces em Interlagos e do país inteiro, ao vivo, pela TV: Ney em vários momentos, em muitos momentos, brincou com a coisa da bicha lôka.
Que maravilha, que beleza!
Estava tudo belo demais, gostoso demais, mas tenho que confessar que pensei no Inominável, e nas pessoas que consideram o Inominável um Mito – aquela parcela da população que acredita que a Terra é plana e que Deus condena os homossexuais.
Meu, que maravilha que Ney Matogrosso bata de frente nos preconceitos ridículos, babacas, dessa gente, desde lá atrás, desde o início dos anos 70, os anos Garrastazu Médici, os anos da tortura, Sérgio Paranhos Fleury, coronel Brilhante Ulstra!
Que beleza, que maravilha é Ney Matogrosso, artista maior – e não precisava ser nada além disso, diacho, mas, além de artista maior, é também um batalhador eterno contra os preconceituosos, os caretas, os babacas, la derecha que a todo lo envillece.
Ney Matogrosso é Homem com H maiúsculo.
3 e 4/2023
Bravo!!!!!
Texto maravilhoso, Sergio Vaz!
Você descreveu o Ney como ele é.
Fiquei com inveja de não ter visto o show.
Ney sempre me fez embasbacar com sua voz, seu jeito inigualável de dançar, seus figurinos, seu repertório. Isto tornou acontecer ontem, 50 anos depois, com a mesma intensidade. A mocinha aqui deixou-se levar por toda aquela apresentação, cantando e dançando também.
Seu artigo diz tudo! Belíssimo.! Estou encantada! Enviei para algumas amigas, com muito orgulho. Parabéns!
Uma grande voz de fato.