O Estado de S. Paulo combate o PT, Lula, o lulo-petismo desde que eles surgiram, nos anos 70. Mais antigo e tradicional entre os grandes jornais brasileiros, do alto de seus imponentes 147 anos de existência, tem uma sólida, firme, duradoura posição liberal na economia, de defesa da iniciativa privada e contra o gigantismo do Estado. É um jornal sabidamente, assumidamente de direita.
Mas é pessoa mal informada ou então de clara má-fé quem disser que o Estadão é pró-Jair Bolsonaro.
O Estadão é conservador – mas jamais foi reacionário. Nasceu abolicionista e republicano, em um Brasil escravocrata e monarquista. Lutou contra a ditadura do Estado Novo getulista que flertava com o nazi-fascismo – e seus donos foram obrigados a se exilar, só voltando ao Brasil em 1945, com a redemocratização.
Sim, defendeu o golpe militar de 1964 – mas passou rapidamente para a linha de frente contra a ditadura e, a partir do AI-5, em dezembro de 1968, foi forçado a conviver com censores dentro de sua sede. Resistiu ao arbítrio colocando versos de “Os Lusíadas”, de Camões, nos trechos cortados pelos censores, enquanto seu filhote, o Jornal da Tarde (em que tive o orgulho de trabalhar ao longo de 14 anos, fora outro tanto mais tarde na Agência Estado e no próprio Estadão), preenchia os espaços vetados com receitas culinárias.
Nos últimos dias, entre o sábado, 15/10, e a quinta, 20/10, o Estadão brindou seus leitores com pelo menos cinco editoriais virulentamente anti-Bolsonaro, anti-bolsonarismo.
Cinco belíssimos editoriais, que, eterno compilador, vou compilar aqui.
Não deixou, de forma alguma, de publicar editoriais contra o lulo-petismo. Na sexta-feira, 21/10, desceu a lenha no ex-presidente em um editorial com o título “As piruetas retóricas de Lula”.
Ao fim desse editorial, no entanto, o grande jornal admitiu: “Muitos eleitores depositarão um voto a Lula exclusivamente motivados pela rejeição a Jair Bolsonaro, com sólidas e bem fundadas razões, a começar pelos riscos reais que o bolsonarismo impõe à democracia.”
Que maravilha!
O Estadão admite que quem votar em Lula no segundo turno por rejeitar Bolsonaro estará agindo com sólidas e bem fundadas razões!
Melhor que isso, só mesmo um editorial antes do domingo que vem, dia 30 – na primeira página! – defendendo o voto de todos os democratas em Lula!
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Antes de transcrever as íntegras dos belos editoriais destes últimos dias, vou reunir aqui alguns trechos especialmente admiráveis.
No dia 15:
“O Estado brasileiro tem sofrido a mais descarada e intensa distorção desde a redemocratização do País. O presidente Jair Bolsonaro manipula o aparato estatal para seus interesses particulares, produzindo continuamente novos abusos, numa sequência aparentemente interminável de excepcionalidades, e suscitando, por sua vez, respostas das instituições que, infelizmente, não têm sido as melhores, com outras tantas excepcionalidades. O cenário é desolador.”
No dia 17:
“Bolsonaro não tem do que se queixar: se ele ainda é presidente e pode até se reeleger, é porque as instituições, judiciais e políticas, não só foram coniventes com seus abusos, como muitas vezes os legitimaram. Tivesse o Congresso cumprido seus deveres constitucionais, por exemplo, Bolsonaro teria sido cassado quando ainda era deputado, por seus frequentes atentados ao decoro e à ordem democrática. Mais impressionante, porém, é o catálogo de crimes de responsabilidade acumulados durante a Presidência e deixados impunes pelo Congresso.”
No dia 19:
“Os dois grandes legados da Lava Jato vêm sendo atacados pela atuação política daquele que foi a mais proeminente figura da Operação, o ex-juiz da 13.ª Vara Federal de Curitiba Sérgio Moro. Ao apoiar a reeleição de Jair Bolsonaro, depois de ter dito tudo o que disse ao País sobre o modo como o atual presidente da República tenta escapar das consequências da lei, o agora senador eleito pelo Paraná transmite a mensagem de que a lei não vale para todos – alguns teriam o privilégio de não responder pelos seus atos – e de que a política deve prevalecer sobre a lei – o interesse político autorizaria amenizar os efeitos da lei.
“O caso é um inteiro absurdo. O atual comportamento de Sérgio Moro não é contraditório com o que outros disseram a respeito do governo Bolsonaro, e sim com o que ele mesmo sempre disse. Foi o próprio ex-juiz que, em abril de 2020, narrou ao País várias tentativas de Jair Bolsonaro para interferir na Polícia Federal (PF), coisa que, segundo Sérgio Moro, ‘a despeito de todos os problemas de corrupção dos governos anteriores’, não tinha acontecido durante a Lava Jato. Nos governos petistas, ‘foi garantida a autonomia da Polícia Federal’, e ‘isso permitiu que os resultados (da Lava Jato) fossem alcançados’, disse.
“Além disso, ao ignorar os muitos indícios de lavagem de dinheiro envolvendo a família Bolsonaro – 51 imóveis cuja compra envolveu dinheiro vivo –, Sérgio Moro ajudou a reforçar a tese dos detratores da Lava Jato: a de que as lideranças da Operação nunca estiveram de fato interessadas no cumprimento da lei, mas apenas em perseguir opositores políticos.
“Os inimigos da Lava Jato não são o PT, o Supremo Tribunal Federal ou Romero Jucá, político que, em 2016, foi flagrado defendendo a necessidade de ‘estancar a sangria’. É o próprio Sérgio Moro quem, de forma sistemática, desmoraliza e desautoriza o trabalho da Lava Jato.”
Uau! Que maravilhosa síntese!
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No dia 20:
“É um desafio à memória de qualquer cidadão resgatar no passado algum episódio remotamente similar à profanação do Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida, quando uma súcia de bolsonaristas radicais achou que era o caso de usar o local sagrado para louvar o presidente Jair Bolsonaro – que lá estava, no dia 12 passado, Dia da Padroeira do Brasil, não para afirmar valores cristãos, mas para explorar a fé de milhões de católicos como arma política.
“Aquele lamentável episódio foi até aqui o caso mais grave de uma escalada de abusos, desrespeito e estupidez dos fanáticos bolsonaristas que, a título de defender valores religiosos, na verdade vilipendiam a fé alheia. Os mesmos que acusam os adversários de representarem uma ameaça à religião e de apoiarem o fechamento de igrejas e templos são os que, na prática, estão a tolher o direito dos outros ao culto.”
E também no dia 20, em outro editorial:
“A menos de duas semanas do segundo turno, a sociedade assiste diariamente à violação de todos os limites do uso da máquina pública em nome da reeleição do presidente Jair Bolsonaro. O Conselho Curador do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) acaba de aprovar o uso de recursos futuros do fundo para o pagamento de até 80% da parcela de financiamentos imobiliários. A proposta funcionará como um empréstimo consignado, lastreado nos depósitos que as empresas ainda farão nas contas individuais de cada empregado. A medida valerá para famílias com renda mensal de até R$ 2.400, garantindo que elas possam adquirir imóveis mais caros do que seus rendimentos efetivamente permitiriam.”
(Abaixo, a capa da edição de 16 de novembro de 1989.)
E, bem, a partir daqui vão as íntegras. São documentos históricos.
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O bolsonarismo e sua perversa disjuntiva
Editorial, O Estado de S. Paulo, 15/10/2022
O Estado brasileiro tem sofrido a mais descarada e intensa distorção desde a redemocratização do País. O presidente Jair Bolsonaro manipula o aparato estatal para seus interesses particulares, produzindo continuamente novos abusos, numa sequência aparentemente interminável de excepcionalidades, e suscitando, por sua vez, respostas das instituições que, infelizmente, não têm sido as melhores, com outras tantas excepcionalidades. O cenário é desolador.
O abuso desta semana consistiu em usar a máquina pública para atacar, em duas novas frentes, os institutos de pesquisa. A partir de uma representação feita pela campanha de reeleição do presidente, o Ministério da Justiça requisitou à Polícia Federal a abertura de inquérito contra os institutos. Além disso, o presidente do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), Alexandre Cordeiro, abriu uma investigação contra o Datafolha, o Ipec e o Ipespe.
São duas ações inéditas e absolutamente ineptas para produzir os supostos efeitos legais pretendidos. Seu objetivo é outro: disseminar desconfiança e criar ainda mais confusão na campanha eleitoral. Usa-se supostamente a lei – o Ministério da Justiça falou em apurar eventual crime de divulgação de pesquisa fraudulenta, o presidente do Cade disse haver indícios de cartel na atuação dos institutos – para atacar a própria lei. Afinal, um dos objetivos do Direito eleitoral é prover um ambiente de tranquilidade durante a campanha, justamente o que o bolsonarismo deseja impedir com suas contínuas excepcionalidades.
Diante dessas inéditas ameaças, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Alexandre de Moraes, considerou que houve por parte da Polícia Federal e do Cade uma “flagrante usurpação das funções constitucionais da Justiça Eleitoral” e determinou, de ofício, a interrupção das duas investigações. Pode-se entender, não sem razão, que Alexandre de Moraes fez o que lhe cabia fazer: eliminou, pela raiz, mais uma ameaça do bolsonarismo à tranquilidade das eleições.
Entretanto, não se pode ignorar que, com a atuação de ofício do presidente do TSE interferindo em órgãos que não estão sob a alçada da Justiça Eleitoral, o bolsonarismo também atingiu seu objetivo. Obteve mais um caso em que a Justiça agiu de forma excepcional, além de seus limites legais, o que não apenas dá munição ao discurso de que Jair Bolsonaro estaria sendo indevidamente perseguido por Alexandre de Moraes, como produz um enfraquecimento do próprio Judiciário. As instituições republicanas devem atuar sempre, sem exceção, dentro da lei. A legitimidade de sua ação inclui necessariamente o estrito respeito aos procedimentos e às esferas de atuação. Ainda que possam ser justificadas pelas circunstâncias, excepcionalidades sempre desgastam o Judiciário.
O bolsonarismo impõe às instituições uma disjuntiva rigorosamente antirrepublicana: a omissão ou o abuso. Suas constantes e crescentes ameaças são tão abusadas – não há rigorosamente nenhum limite – que uma resposta dentro da lei, de acordo com os ritos previstos, parece ser insuficiente, mais se assemelhando a uma omissão. Ou seja, para não serem coniventes, as instituições são instadas a uma atuação fora dos padrões, fora dos ritos.
A ameaça desta semana é, por si só, muito grave. O governo federal conseguiu envolver até o Cade nas eleições. Toda a máquina pública – mesmo aqueles órgãos que, em tese, dispõem de autonomia e não têm relação com temas eleitorais – está orientada para reeleger Jair Bolsonaro. Mas o problema do bolsonarismo é muito mais sério do que uma campanha eleitoral sem escrúpulos. São quatro anos em que, de forma ininterrupta, Jair Bolsonaro tem imposto essa disjuntiva entre omissão e abuso sobre o funcionamento de todo o Estado Democrático de Direito.
Não há respostas fáceis para lidar com esse problema. De toda forma, há um requisito para seu enfrentamento. É preciso reconhecer, sem meias palavras, o problema: há um presidente da República deturpando profundamente a lei e a máquina pública.
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Bolsonaro não tem do que se queixar
Editorial, O Estado de S. Paulo, 17/10/2022
Há poucos dias, o presidente Jair Bolsonaro disse que “a maioria” dos ministros do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) “não tem isenção”, pois “os caras têm lado político” – contra ele, naturalmente. Bolsonaro se queixou ainda de que, em “qualquer ação no Supremo e no TSE” contra ele e seu governo, essas Cortes superiores invariavelmente “dão ganho de causa para o outro lado”.
Mas Bolsonaro não tem do que se queixar: se ele ainda é presidente e pode até se reeleger, é porque as instituições, judiciais e políticas, não só foram coniventes com seus abusos, como muitas vezes os legitimaram.
Tivesse o Congresso cumprido seus deveres constitucionais, por exemplo, Bolsonaro teria sido cassado quando ainda era deputado, por seus frequentes atentados ao decoro e à ordem democrática. Mais impressionante, porém, é o catálogo de crimes de responsabilidade acumulados durante a Presidência e deixados impunes pelo Congresso.
O candidato “antissistema” de 2018, que conseguiu se eleger prometendo fazer terra arrasada da “velha política” – simbolizada pelo Centrão, comparado pela campanha bolsonarista a um bando de ladrões –, tornou-se rapidamente vassalo desse mesmo Centrão, que lhe garantiu a permanência no poder, a despeito das inúmeras razões para seu impeachment, e ainda alavancou sua reeleição. Sem o Centrão como inimigo, o bolsonarismo, como qualquer movimento populista, logo inventou outro: o Judiciário.
Retratados pelo bolsonarismo como ardilosos manipuladores, encerrados em seus gabinetes escuros, envoltos em suas togas sinistras, os magistrados foram apontados por Bolsonaro como a fonte de todos os problemas nacionais e, principalmente, como ameaça real à “liberdade”.
A realidade, contudo, é muito diferente do que a propaganda bolsonarista alardeia. Não foram poucas as vezes em que decisões judiciais impediram, por exemplo, que as robustas suspeitas de que a família Bolsonaro operou por muitos anos um esquema de rachadinha fossem devidamente esclarecidas.
Ademais, o Tribunal Superior Eleitoral parece mais ocupado em patrulhar as redes sociais do que em julgar ações contra o evidente abuso de poder político e econômico por parte do presidente, como nos atos eleitorais extemporâneos, a utilização do Palácio da Alvorada como núcleo de campanha e a transformação de comemorações cívicas e atos oficiais da chefia de Estado em comícios. Motivos para cassar a candidatura do presidente não faltaram.
Mais grave, contudo, é o sequestro das políticas públicas para fins eleitorais, escandaloso desvio que nem sequer está sendo abordado pela Justiça Eleitoral. Alimentada com cargos e verbas, a clientela parlamentar de Bolsonaro não só o blindou de um impeachment, como solapou a Constituição, o pacto federativo, a ordem jurídica, os marcos fiscais e a legislação eleitoral para fabricar incontáveis “pacotes de bondades” que se dissolverão ao fim do ano eleitoral. Em pleno segundo turno, o governo anuncia o perdão de dívidas, mais dinheiro para o Auxílio Brasil e benefícios extras para taxistas. À força de canetadas, o presidente transformou os contribuintes em financiadores compulsórios de sua campanha.
Assim como Bolsonaro atacava o Parlamento por fora, enquanto o corrompia por dentro, assim ele agride a Justiça Eleitoral por fora (bombardeando-a com acusações fraudulentas sobre a lisura das urnas) e a degrada por dentro (estraçalhando o equilíbrio eleitoral com o peso da máquina pública). Tudo sob o olhar dócil da Procuradoria-Geral da República.
Como parte de seu figurino antissistema, Bolsonaro hostilizou todas as instituições desenhadas para conter arroubos autoritários como os seus. Essas instituições, tão desmoralizadas pela retórica bolsonarista em razão de seu “ativismo”, na realidade se desmoralizaram a si mesmas por sua omissão ou cumplicidade. Freios e contrapesos foram estiolados, abrindo precedentes perniciosos para os demagogos do futuro.
Muito além de sanar as mazelas conjunturais legadas pelo desgoverno Bolsonaro, a pauta mais relevante da agenda pública nos próximos anos será restaurar a estrutura institucional degradada até a raiz pela razia antidemocrática bolsonarista.
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Moro, o inimigo da Lava Jato
Editorial, O Estado de S. Paulo, 19/10/2022
A Operação Lava Jato teve dois grandes méritos. Em primeiro lugar, mostrou que a lei vale para todos – ricos e pobres, empresários e políticos, poderosos e anônimos. Todos devem responder por seus atos. Longe de significar uma obviedade, a recordação desse princípio republicano básico – todos são iguais perante a lei – representou uma revolução na percepção sobre a Justiça brasileira, que, até então, quase sempre tinha se mostrado conivente com a impunidade dos poderosos.
O segundo grande mérito da Lava Jato foi mostrar ao País que a política não pode prevalecer sobre a lei. Toda a atuação política deve estar submetida ao império da lei – e isso vale também para as estatais e empresas de capital misto, para as indicações de cargos, para as licitações, para os acordos partidários, para as doações de campanha. Nada está fora do alcance da lei.
Trata-se de dois grandes legados da Operação Lava Jato, que transcendem, em boa medida, os resultados dos próprios processos penais. Seja qual for o encaminhamento que um caso tenha recebido ou venha a receber, é de reconhecer que o País adquiriu, com a Lava Jato, um outro patamar de exigência em relação ao cumprimento da lei.
Tudo isso é muito benéfico ao País. Apesar de seus erros e excessos, a Operação Lava Jato foi capaz de incidir sobre uma notória carência da vida nacional: o baixo grau de respeito à lei. Por isso, não se pode estranhar o apoio que a Lava Jato recebeu por parte da população. Conforme a expressão popular, “lavou a alma”.
No entanto, como se a vida real fizesse questão de superar os mais criativos roteiristas de ficção, os dois grandes legados da Lava Jato vêm sendo atacados pela atuação política daquele que foi a mais proeminente figura da Operação, o ex-juiz da 13.ª Vara Federal de Curitiba Sérgio Moro. Ao apoiar a reeleição de Jair Bolsonaro, depois de ter dito tudo o que disse ao País sobre o modo como o atual presidente da República tenta escapar das consequências da lei, o agora senador eleito pelo Paraná transmite a mensagem de que a lei não vale para todos – alguns teriam o privilégio de não responder pelos seus atos – e de que a política deve prevalecer sobre a lei – o interesse político autorizaria amenizar os efeitos da lei.
O caso é um inteiro absurdo. O atual comportamento de Sérgio Moro não é contraditório com o que outros disseram a respeito do governo Bolsonaro, e sim com o que ele mesmo sempre disse. Foi o próprio ex-juiz que, em abril de 2020, narrou ao País várias tentativas de Jair Bolsonaro para interferir na Polícia Federal (PF), coisa que, segundo Sérgio Moro, “a despeito de todos os problemas de corrupção dos governos anteriores”, não tinha acontecido durante a Lava Jato. Nos governos petistas, “foi garantida a autonomia da Polícia Federal”, e “isso permitiu que os resultados (da Lava Jato) fossem alcançados”, disse.
Além disso, ao ignorar os muitos indícios de lavagem de dinheiro envolvendo a família Bolsonaro – 51 imóveis cuja compra envolveu dinheiro vivo –, Sérgio Moro ajudou a reforçar a tese dos detratores da Lava Jato: a de que as lideranças da Operação nunca estiveram de fato interessadas no cumprimento da lei, mas apenas em perseguir opositores políticos.
Os inimigos da Lava Jato não são o PT, o Supremo Tribunal Federal ou Romero Jucá, político que, em 2016, foi flagrado defendendo a necessidade de “estancar a sangria”. É o próprio Sérgio Moro quem, de forma sistemática, desmoraliza e desautoriza o trabalho da Lava Jato. Em 2018, ao deixar a magistratura para assumir o Ministério da Justiça do governo Bolsonaro, ele deu todos os elementos para o reconhecimento da parcialidade de sua atuação como magistrado nos processos contra Lula, abrindo caminho para a anulação das decisões judiciais. Agora, ao participar do núcleo da campanha de reeleição de Bolsonaro – justamente quem o teria impedido de realizar seu trabalho de combate à corrupção na pasta da Justiça –, Sérgio Moro diz que a lei é só para os inimigos e que, na política, vale tudo. É a antítese perfeita da mensagem renovadora da Lava Jato.
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Desrespeito à liberdade religiosa
Editorial, O Estado de S. Paulo, 20/10/2022
A corrida presidencial de 2022 confirmou todas as previsões, mesmo as mais sombrias, de que esta seria uma das mais ignóbeis campanhas eleitorais da história recente do País. Nem mesmo a liberdade religiosa e de culto, garantia fundamental assegurada pela Constituição, tem sido respeitada.
É um desafio à memória de qualquer cidadão resgatar no passado algum episódio remotamente similar à profanação do Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida, quando uma súcia de bolsonaristas radicais achou que era o caso de usar o local sagrado para louvar o presidente Jair Bolsonaro – que lá estava, no dia 12 passado, Dia da Padroeira do Brasil, não para afirmar valores cristãos, mas para explorar a fé de milhões de católicos como arma política.
Aquele lamentável episódio foi até aqui o caso mais grave de uma escalada de abusos, desrespeito e estupidez dos fanáticos bolsonaristas que, a título de defender valores religiosos, na verdade vilipendiam a fé alheia. Os mesmos que acusam os adversários de representarem uma ameaça à religião e de apoiarem o fechamento de igrejas e templos são os que, na prática, estão a tolher o direito dos outros ao culto.
Padres católicos passaram a ser hostilizados durante suas homilias. Até dom Odilo Scherer, cardeal arcebispo de São Paulo, passou a ser atacado nas redes sociais após fazer uma reflexão pertinente diante do crescimento dos episódios de violência religiosa. No Twitter, d. Odilo escreveu que “a fé em Deus permanece depois das eleições, assim como os valores morais, a justiça, a fraternidade, a amizade e a família”. Por fim, questionou: “Vale a pena colocar tudo isso em risco no caldo da briga política?”.
Foi por causa dessa mensagem de paz que os camisas pardas do bolsonarismo, infensos à razão e à empatia, passaram a acossar d. Odilo nas redes sociais, associando-o ao comunismo, a uma “agenda esquerdista” e, pasme o leitor, à defesa do aborto. Tal foi a virulência dos ataques contra d. Odilo, que o cardeal se viu compelido a explicar publicamente até a razão de ser da cor vermelha de suas vestes eclesiásticas. “Se alguém estranha minha roupa vermelha, saiba que a cor dos cardeais é o vermelho (sangue), simbolizando o amor à Igreja e a prontidão para o martírio, se preciso for”. É absurdo, quase cômico, que d. Odilo tenha sido obrigado a dar essas explicações, mas vivemos tempos em que o absurdo foi legitimado pelos liberticidas.
Odilo também repeliu a infame associação que os bolsonaristas mais radicais fizeram entre sua missão pastoral e uma suposta tolerância em relação ao aborto. “Escrevi muitos artigos contra o aborto, colocando claramente a minha posição”, escreveu o prelado no Twitter. Os leitores deste jornal conhecem bem a posição do cardeal. Não foram poucos os artigos de sua lavra no Estadão que abordaram esse tema sensível.
Mas a verdade é irrelevante na atual campanha. Para os bolsonaristas radicais, o candidato Lula da Silva, caso seja eleito presidente, perseguirá os católicos, a exemplo do que tem feito o ditador Daniel Ortega na Nicarágua, tratado por “companheiro” pelo líder petista. Malgrado seja incapaz de condenar a tirania de Ortega ou de qualquer outro esquerdista latino-americano, Lula jamais sugeriu que pudesse perseguir cristãos ou quaisquer outros religiosos.
Na verdade, quem tem agido sob inspiração de um espírito claramente anticristão é o próprio presidente Bolsonaro. Foi ele, em sua campanha pela reeleição, quem estimulou a obliteração das barreiras morais de muitos de seus apoiadores mais radicais, violentando alguns dos principais valores legados por Jesus Cristo, sobretudo os relacionados ao amor ao próximo, à tolerância e à solidariedade. Quem não aceita o “mito” como salvador é tratado como inimigo figadal por seus acólitos, mesmo aqueles que buscam nas igrejas um refúgio de paz e conforto espiritual.
É dessa forma, constrangendo religiosos que não dobram os joelhos diante de Bolsonaro, que os bolsonaristas pretendem fazer de seu candidato o campeão da defesa de Deus e da família?
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Anatomia de um crime eleitoral
Editorial, O Estado de S. Paulo, 20/10/2022
A menos de duas semanas do segundo turno, a sociedade assiste diariamente à violação de todos os limites do uso da máquina pública em nome da reeleição do presidente Jair Bolsonaro. O Conselho Curador do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) acaba de aprovar o uso de recursos futuros do fundo para o pagamento de até 80% da parcela de financiamentos imobiliários. A proposta funcionará como um empréstimo consignado, lastreado nos depósitos que as empresas ainda farão nas contas individuais de cada empregado. A medida valerá para famílias com renda mensal de até R$ 2.400, garantindo que elas possam adquirir imóveis mais caros do que seus rendimentos efetivamente permitiriam.
A esdrúxula sugestão do Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) foi aprovada por unanimidade pelo conselho, composto por seis integrantes do governo, três representantes dos trabalhadores e três dos empregadores. É impressionante que ninguém tenha ousado fazer qualquer ponderação sobre os riscos da proposta – nem mesmo sobre o quanto as prestações podem aumentar caso o empregado seja demitido e sobre o potencial que isso tem para estrangular sua já limitada capacidade financeira.
Que não haja engano: essa súbita sensibilidade com os mais pobres não tem nada de genuína. Do contrário, o governo não teria paralisado, por mais de três anos, a contratação de novas unidades habitacionais subsidiadas com recursos do Orçamento no âmbito do Casa Verde e Amarela, não por acaso direcionadas à mesma parcela da população. Para 2023, o Orçamento enviado pelo Executivo ao Congresso prevê apenas R$ 82,3 milhões para o programa, um corte de 95% em relação ao valor reservado para este ano, em que apenas 2.450 unidades foram contratadas.
Longe de resolver o crônico déficit habitacional do País, que atingia 5,8 milhões de famílias em 2019, a aprovação do uso do FGTS futuro em financiamentos imobiliários é uma medida que atende a um pleito de construtoras interessadas em desovar um elevado estoque de imóveis. Quanto ao risco de inadimplência, ora, é para isso que servem os bancos como a Caixa. Afinal, quem mais aceitaria entrar de cabeça em um financiamento que tem tudo para elevar ainda mais os níveis recordes de endividamento que vêm sendo registrados no País?
Prova disso é a atuação “patriótica” da Caixa na modalidade de crédito consignado do Auxílio Brasil. Em três dias de operações, um banco que é conhecido por um atendimento burocrático já havia liberado nada menos que R$ 1,8 bilhão a 700 mil beneficiários, mas a única instituição que viu o caráter eleitoreiro dessas ações parece ter sido o Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (MP/TCU). Coube ao subprocurador-geral Lucas Furtado pedir à Corte de ministros que suspendesse a oferta em caráter cautelar. “Não é desarrazoado supor que o verdadeiro propósito dessas ações, ou pelo menos da forma como elas vêm sendo conduzidas, seja o de beneficiar eleitoralmente o atual presidente da República e candidato à reeleição”, disse.
Se o Auxílio Brasil já era o pior, mais caro e mais ineficiente programa social da história do País, a ideia do empréstimo consignado para seus beneficiários é uma completa incoerência desde sua concepção. Como justificar a alavancagem financeira de pessoas sem condições de gerar o próprio rendimento e ignorar o fato de que estar em um programa de transferência de renda é justamente o que garante a elas o mínimo para sobreviver? Essa, no entanto, é apenas uma das várias medidas populistas e irresponsáveis anunciadas pelo governo às vésperas da eleição – e nada indica que será a última.
É preciso reconhecer o talento de Jair Bolsonaro para normalizar o absurdo. Nunca se viu um uso tão escancarado da máquina pública para eleger um candidato. Não se sabe se esse conjunto de políticas terá potencial para mudar o cenário da disputa presidencial mais acirrada da história do País, mas não há dúvida de que o atual governo atingiu o estado da arte no que diz respeito à exploração política da pobreza.
22/10/2022
Este post é – se me permitem a brincadeira – um spin-off da série de textos e compilações “Ou Lula ou o horror”.
A série não tem periodicidade fixa.
Um grupo de 59 especialistas no combate à corrução anuncia seu apoio a Lula. (6)
Para não trair os princípios democráticos, o fundador do Partido Novo votará em Lula. (5)