A Grande Mentira

Com rejeição consolidada acima dos 50%, mais precisamente 54%, o presidente Jair Bolsonaro tem baixíssima chance de renovar o seu mandato. Mas sua derrota anunciada esconde uma vitória apavorante: ele está conseguindo inocular o vírus da desconfiança no processo eleitoral – um risco real para a democracia. 

Ainda que 73% dos brasileiros afirmem confiar nas urnas eletrônicas, o número é 9 pontos percentuais aquém dos 82% apurados em março. Pior: mais da metade, 55%, veem alguma chance de fraude nas eleições, e 58% concordam que as Forças Armadas – que constitucionalmente deveriam passar longe do processo de votação, limitando-se ao apoio logístico – devem participar da apuração do pleito.

Os dados, coletados pelo Datafolha no mesmo universo da pesquisa eleitoral que apontou a possibilidade de Luiz Inácio Lula da Silva liquidar a fatura já no primeiro turno se a eleição fosse hoje – 2.556 eleitores em 181 cidades -, indicam o sucesso parcial da ofensiva de Bolsonaro contra as urnas eletrônicas. E muita efetividade no bombardeio geral feito cotidianamente por ele, incluindo críticas aos ministros do TSE e dúvidas quanto à contagem dos votos, que ele vira e mexe diz que é feita por três ou quatro em uma salinha escura.

Apontar fraudes sem provas como Bolsonaro faz é uma cópia tupiniquim da Grande Mentira, termo corretamente atribuído à ação de Donald Trump para disseminar suspeição sobre a vitória de Joe Biden e de todo o processo eleitoral dos Estados Unidos. Por lá, Trump arrebanhou apoio majoritário dos republicanos para replicar sua absurda tese, o que Bolsonaro, politicamente frágil e dependente de um Centrão interesseiro, felizmente tem poucas chances de conseguir.

Ainda assim, a semeadura da descrença, de que o voto dado pode não ser contado ou até mesmo registrado para o adversário, é fatal para a democracia.

Em artigo publicado na semana passada, Thomas Friedman, editorialista do The New York Times, relata sua angústia diante do fato de a Grande Mentira “quebrar algo muito valioso… a capacidade de realizar transições de poder pacificamente e legitimamente”. Alerta que, “se isso se romper, nenhuma das instituições resistirá muito mais tempo, e seremos jogados num caos político e financeiro”. Isso nos Estados Unidos, com mais de dois séculos de sólida democracia.

No Brasil, as instituições têm reagido aos arreganhos de Bolsonaro com algum fôlego. O Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral se tornaram alvos preferenciais do presidente exatamente pela marcação cerrada que fazem às suas incursões mentirosas contra o processo eleitoral e a própria democracia.  Mesmo mais tímido, o Congresso também se impõe, e foi firme ao rejeitar a proposta de adoção do voto impresso defendida pelos bolsonaristas.

Mas nem o STF nem o TSE, muito menos o Congresso, farão Bolsonaro mudar a estratégia. Ele sabe a desvantagem que tem na disputa eleitoral. Portanto, só o tumulto – e quem sabe o melou geral – interessa.

Sem qualquer pudor, os mesmos bolsonaristas que surram a pesquisa de intenção de voto aplaudem a parte dela que mostra o êxito do presidente em minar o processo eleitoral. Diligentemente, preparam a reação dos seus para a previsível derrota.

Além de reconstruir as organizações de Estado dinamitadas por Bolsonaro, o país terá de mobilizar esforços para desarmar as bombas de suspeição da legitimidade das eleições. Sem desmascarar a Grande Mentira não haverá futuro. Uma tarefa não só do próximo presidente, mas de todos nós.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 29/5/2022. 

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