Suspender temporariamente o Telegram por descumprimento a ordens judiciais não é censura, proibir o filme Como se Tornar o Pior Aluno da Escola é. Tornar nulas condenações por tecnicismos processuais não é declaração de inocência, assim como delação ou investigação não significam crime ou culpa. Mas, dando ares de alhos aos bugalhos, fatos são traduzidos de acordo com a conveniência. Uma tática política velha, indisfarçável mesmo sob o novo apelido – narrativa -, por sinal, pra lá de antipático.
Na sexta-feira, bastou o ministro Alexandre de Moraes atender à solicitação da Polícia Federal de bloqueio das atividades do Telegram no Brasil para o governo Jair Bolsonaro, apoiadores do presidente e alguns intelectuais de esquerda denunciarem o ato como censura e cerceamento de liberdade. Nem mesmo se deram ao trabalho de ler o despacho do magistrado. Se o fizeram, simplesmente desconsideraram o conteúdo em favor da “narrativa” que os interessava. Mais um caso de identidade na forma de agir dos times polarizados.
Nas redes, a turma de Bolsonaro criou vários memes detonando Moraes, comparando-o a um ditador, além de divulgar manuais para ensinar aos usuários como burlar a decisão. Na outra ponta, gente respeitada da esquerda alertava para o perigo do precedente de censura no ambiente digital, como se a suspensão não estivesse embasada em uma questão objetiva: o reiterado descumprimento por parte do Telegram de determinações da Justiça.
Em uma comparação simples, é como bloquear a conta bancária de um devedor que não cumpriu ordem judicial. Pode-se até discutir a dosagem da medida, mas não há aqui qualquer tipo de censura.
Até o russo que controla a rede, Pavel Durov, fez mea culpa – ainda que esfarrapada -, admitindo negligência do Telegram e problemas de comunicação com a Suprema Corte brasileira. Ainda assim, as “narrativas” políticas não se alteraram.
Já no caso da comédia de Fabrício Bittar, com Danilo Gentili e Fábio Porchat, lançada há dois anos, a decisão do Ministério da Justiça de proibir a veiculação do filme foi censura mesmo, sem qualquer margem para tergiversação. Extrapolou tanto na sua competência que os canais citados – GloboPlay e Netflix – se sentiram desobrigados a cumprir a determinação. E o governo não chiou, até porque o ato já havia cumprido o objetivo primeiro de agradar aos aliados presidente. Só mudou a indicação etária de 14 para 18 anos. Aqui, o bolsonarismo abdicou da bandeira da liberdade substituindo-a pela “narrativa” contra a “apologia à pedofilia”, que, diga-se, não existe no filme.
Os fatos no campo da esquerda também têm tintas próprias. Lula virou santo depois de ter suas sentenças anuladas por mudança de foro ou por suspeitas sobre a atuação do então juiz Sérgio Moro, cuja alegada suspeição ainda precisa ser processada e julgada. O ex não foi inocentado como insiste a “narrativa” petista, mas beneficiado por questiúnculas processuais. Seu partido continua na berlinda e não há história alguma capaz de explicar tantos bilhões desviados da Petrobras e suas subsidiárias.
Com maior presença nas redes sociais, eixo de comunicação que sustentou sua campanha em 2018, Bolsonaro é mais ágil na mobilização e difusão de suas versões. Conseguiu, inclusive, roubar bandeiras que eram identificadas com o outro lado, a começar pelo verde-amarelo, marca das diretas-já, e pela bandeira do Brasil. Na pandemia, bateu na tecla “da liberdade de ir e vir” para fazer frente às corretas medidas de distanciamento social determinadas pelos governos estaduais e municipais, buscando grudar em si a imagem de defensor da liberdade, verbete que ele usa para qualquer fim, incluindo o de armar a população. O mais apavorante é que até então ele tem tido êxito.
O PT de Lula escorrega não só no meio digital, mas na própria narrativa. Na guerra de Putin, critica a invasão da Ucrânia, mas desculpa o déspota porque ele estaria travando uma luta contra o imperialismo norte-americano, o “grande satã”. Fecha os olhos para a escalada de repressão, prisões e censura na Rússia; aplaude os ditadores da Venezuela, Nicarágua e Cuba.
O embate de “narrativas” poderia até ser útil como fomento ao contraditório, um dos principais insumos da democracia. Mas qual o quê. Nelas, o conteúdo é fechado. Ou se crê naquela “verdade” ou se é cancelado pelo grupo que a defende. A tática, que já se provou eficaz, é falar com o nicho e a partir dele transformar em fato a cantilena contada.
As consequências podem ser nefastas. A principal delas é o sucesso nas urnas a partir do engodo. Portanto, passa da hora de dar um basta em candidatos e campanhas sustentadas por “narrativas” que não passam de “verdades alternativas”. Em bom português, mentiras.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 20/3/2022.