Malcolm Davenport, marinheiro inglês a caminho do Caribe, naufragou no Atlântico próximo da foz do Rio Amazonas no comecinho do século passado. Bom nadador, foi o único a se salvar, ajudado por precário salva-vidas a que se agarrou com unhas e dentes. Afinal, como a reencarnação de Robinson Crusoé, alcançou, exausto, a praia de Paquara, no litoral do Pará. Aí termina a realidade e começa a lenda.
Paquara nem chega a ser vila, é apenas um amontoado de casas, algumas de madeira, outras de palha, três ou quatro de alvenaria. Resiste em torno de um farol, seus habitantes são todos pescadores e hoje, quando já entramos no século XXI, permanece do mesmo jeito como há cem anos. Ali até o dinheiro que circula é, digamos assim, exíguo. Tudo funciona na base da troca, o pescador fazendo escambo com o agricultor que produz farinha, esse repassando mandioca e recebendo ovos e galinhas e assim por diante. Não há luz elétrica e no local existe apenas uma geladeira, movida a querosene, de resto como o farol. Para mim é uma espécie de Brigadoon tropical que emerge de vez em quando das brumas do tempo. Pedro, o faroleiro, é meu amigo. Sempre que posso vou visitá-lo.
A primeira pista que tive de Malcolm foi uma libra esterlina de prata, das que circulavam no final do século XIX e começos do XX. Eu a vi entronizada no colo de uma nativa pendendo de uma corrente, destas de feira.
– Bonita – comentei, apontando.
– Era da minha avó.
– E quem deu a ela?
– Ah, foi o homem que voava.
– O homem que voava? – levantei as sobrancelhas.
Mais não perguntei, pois a guria se foi.
Pedro, o faroleiro meu amigo, é um sujeito de não irremediáveis silêncios. Como se fosse uma sina de todos os seus colegas de profissão, também fuma cachimbo, sabe tirar boas notas de uma pequena sanfona, e me transmite a certeza de que conversa com as aves e todos os peixes do mar. Mora em Paquara há tempos, não aparenta os 70 e alguns anos que tem até porque, em sua cabeça, não há um único ou remoto cabelo branco. Não, nunca pintou. Nem teria como, naqueles ermos.
– O que você sabe do homem que voava? – perguntei na mesma noite.
– Bom – não vacilou –, dizem que ele voa ainda.
– Você já viu?
– Não, as mulheres é que vêem. Juram que em certas noites ele passa diante do facho de luz do farol.
– E tem asas?
– Enormes, como as de um anjo. E os olhos são vermelhos, como uma ponta de cigarro no escuro no instante em que você dá a tragada.
Daí detalhou o que sabia do passado. O homem que voava passava em certos momentos de pouca lua, diante do facho do farol, pegava as moças em vôos rasantes e, batendo as asas, sumia com elas em direção às dunas. Quando as meninas voltavam vinham, de alguma forma, encantadas. Nas noites mais escuras todas as que já tinham sido levadas uma vez ficavam na espera. E ele vinha, com o seu ruflar enorme, os olhos acesos como um orvalho de sangue, a escolhida ia, e as que ficavam esperavam; o barulho das asas batendo, para elas, era música. Como os fortes ventos de outubro uivando entre os ajuruzeiros das dunas.
No dia seguinte, cedo, vejo novamente a menina com a libra esterlina pousada no colo. Pergunto da avó, fico sabendo que vivia e morava num casebre próximo do areal imenso. Com bem mais de 90 anos, preferia estar sozinha. Fui lá.
Agora sim, com jeito, com tato, colhi tudo sobre o inglês que voava. Ganhando confiança, consegui colocar as mãos sobre o diário que ele deixou. Li, com todas as letras: “Meu nome é Malcolm Davenport, nasci em Stratford-Upon-Avon, a terra de Shakespeare, Inglaterra, em 10 de janeiro de 1880, e naufraguei neste litoral em 25 de junho de 1905”. Viveu entre as dunas até o final dos anos 40 do século passado, permanência que desfrutou por livre e espontânea vontade. Foi pescador e criador de cabras. Se realmente voava, nada diz sobre isso.
– A sepultura dele é para aqueles lados – a velha aponta no rumo do mar.
Digo que gostaria de ir lá e ela pede que volte no dia seguinte.
– É o aniversário da primeira vez que ele me levou – justifica.
Ao sair para o pequeno aglomerado de casas que formam Paquara, pela primeira vez percebi entre as pessoas que moram no local algumas francamente louras, três ou quatro de olhos incrivelmente claros. À noite fiquei horas atento aos fachos do farol à espera de uma sombra, ou um ruflar de asas. Mas fazia lua e o inglês, segundo garantia a tradição, não voava nas noites prateadas que batiam sobre o mar e as dunas.
Pela manhã volto ao casebre da mulher, e de lá saímos para o local da sepultura. Atravessamos pequeno vale entre as dunas, depois subimos até o topo de um morrinho que se debruça sobre as ondas. Ali, sob um copado cajueiro, em chão relvado, o túmulo com uma cruz singela. A velha ajoelha e eu fico olhando, na luz batida pelos ventos. Súbito adiante, sobre uma pedra, pousa uma imensa, uma impressionante gaivota de asas pontudas como as de um albatroz. Durante os instantes em que a dona rezou, permaneceu na cena com o bico curvo levemente cinza. Quando a fulana levantou, a ave primeiro abriu as asas. Depois se ergueu contra o vento, até ser tragada pelo azul. Juro por tudo quanto é mais sagrado, só poderia ser ele. Por Deus, era ele, na síntese absolutamente perfeita da manhã.
Esta crônica foi originalmente publicada no Correio Popular
Contente:
Que texto mais gostoso de se ler.
Encantadora a comparação do vilarejo com a Brigadoon envolta em Brumas.Será que mais alguém, fora nós dois, sabe que lugar vem a ser esse?
Também encantador o fato do tal Malcolm vir da terra de Shakespeare.Este mundo é realmente um emaranhado de surpresas para quem tem olhos para ver e ouvidos para ouvir. Parabéns!
Que bom receber estas palavras de Ercilia Pollice. Que é uma das artistas mais completas que conheço. Tem vários livros pubiicados, é cronista de jornais, blogs, revistas e, certamente, uma das melhores artistas plásticas do Brasil. Sua última exposição em Paris foi um arraso. Meu Deus, e ela gostou do meu texto! Estou no céu.