É a vacina, estúpido!

O presidente Jair Bolsonaro vive o pior momento de seu governo. Pior até que em maio do ano passado, quando combateu as medidas de isolamento social escudando-se no discurso de proteger a economia para salvar o emprego das pessoas. Era uma falácia, dada a impossibilidade de uma retomada da economia sustentada sem debelar a pandemia. Mas funcionou por algum tempo.

Empresários aderiram ao seu discurso acreditando que era melhor manter seus negócios abertos, camadas mais desprotegidas engrossaram o coro pois não podiam se dar ao luxo de ficar em casa e não trabalhar. O auxílio emergencial alavancou a popularidade do presidente, a despeito de sua forte campanha contra as únicas medidas então disponíveis na prateleira para mitigar os efeitos da pandemia, o uso de máscaras e o isolamento social.

Para encarar os efeitos diretos do vírus, irresponsavelmente receitou cloroquina para um suposto tratamento precoce. Mas o remédio, de pronto, foi condenado por todos os estudos científicos realizados.

O tempo, senhor da razão, destruiu o castelo de cartas do negacionismo governamental. Ao fazer descaso da pandemia com expressões chulas, bravatas grotescas e convicções atrasadas, Bolsonaro não deu resposta eficaz para as duas crises entrelaçadas: a econômica e a sanitária. Não percebeu o óbvio. Ambas exigem o mesmo remédio: a vacinação em massa. Tivesse investido na vacina como fez com a cloroquina, a história seria totalmente diferente.

Não salvou a economia e muito menos vidas.

Agora azedou o humor dos brasileiros, da Faria Lima aos grotões do país. Empresários que antes faziam lobby contra o isolamento tomaram consciência da impossibilidade de a economia crescer e gerar empregos sem a vacinação em massa. Até mesmo os evangélicos descobriram a pólvora. Sem vacina, não há dízimo.

O fim do auxílio emergencial, as cenas dantescas da falta de oxigênio no Amazonas, a inoperância dos ministros e a possibilidade de mutações do vírus serem mais contagiosas e letais puxaram para baixo a aprovação do presidente. A realidade das pesquisas faz o governo correr atrás do prejuízo. Seu desafio é colocar algo no lugar do auxílio e sair à cata de imunizantes em um quadro de uma guerra comercial das vacinas. É uma briga de gente grande, na qual os países ricos e os mais previdentes levam enorme vantagem.

A deterioração econômica e social é outro complicador. O fim do auxílio emergencial levará a uma queda da renda das famílias da ordem de 17%, consequentemente à retração da economia no primeiro trimestre. Pode se estender ao segundo, o que tecnicamente configuraria um quadro de recessão. O mundo do negócio já contratou que ao final do ano a economia não retornará ao patamar de 2019.

Com a dívida pública chegando a 90% do PIB e a arrecadação da União tendo uma queda de quase 7% no ano passado, fica difícil colocar algo no lugar do benefício sem agravar mais o desequilíbrio fiscal do governo, o que pode acelerar a desvalorização do real e a elevação dos preços. O binômio perverso baixo crescimento/inflação pode voltar.

É aqui que Bolsonaro está perdendo a guerra. Estranha-se que um governo com forte presença de militares, em tese formados em planejamento e estratégia, tenha errado tanto, sem ter noção do objetivo a ser perseguido. A arte militar já ensina: quem erra na estratégia faz movimentos táticos erráticos cujo resultado é a derrota fragorosa.

O governo não trabalhou para ter um cardápio de vacinas capazes de atender à demanda do país. Apostou em uma única ficha, a AstraZeneca. A carta da Pfizer de setembro passado e divulgada agora desnuda a imprevidência – o governo desdenhou da aquisição de milhões de doses. O consórcio Covax ofereceu atender 50% da demanda brasileira, mas o governo só contratou 10%. Estigmatizou a China, boicotou até a undécima hora a Coronavac produzida pelo Butantan. Nunca viu nem ouviu falar da Sputnik. Talvez por ser russa.

Em relação à prioridade do país, assistimos a uma falência múltipla dos órgãos governamentais. O ministro da Saúde se exilou na selva amazônica. Alvo de um inquérito autorizado pelo Supremo Tribunal Federal, só não foi demitido por ter um papel conveniente: o de saco de pancada, desviando, assim, os golpes que deveriam ser direcionados ao presidente.

O sempre eloquente ministro Paulo Guedes refugiou-se no mutismo. Só nesta semana descobriu o ovo de Colombo, passando a defender a vacinação em massa. Tornou-se peça decorativa, com o empresariado descrevendo-o como “um zumbi no Ministério da Economia”.

Em matéria de zumbis, o governo anda cheio. Ernesto Araújo é um deles, no Itamaraty. Virou ministro dos Conflitos Externos, sem o menor poder de diálogo com países produtores de insumos para os imunizantes, como a China.

Já o general Braga Neto, que assumiu a Casa Civil para ser o condutor de um gabinete de crise e a quem caberia a missão de reorientar o parque produtivo para atender à demanda da pandemia, tem sido de uma incompetência homérica. Que falta faz um Pedro Parente! Só essa ausência explica a vergonhosa falta do oxigênio em UTIs que levou à morte de brasileiros por asfixia.

Reconheça-se uma proeza de Bolsonaro, a união entre a esquerda e a direita em torno da bandeira do  impeachment. O presidente tirou as oposições do canto do ringue, dando a elas um discurso com ressonância nas ruas.

Governo em queda de popularidade, com o fantasma do impeachment a assombrá-lo, sempre fez o Centrão lamber o beiço. Vender dificuldade para comprar facilidade é com ele mesmo.  Pode blindar o presidente, mas a fatura virá rapidinho. O Centrão vai querer ser o bloco hegemônico do governo, desidratando o núcleo militar. Faz sentido. Os militares aboletados no governo foram parceiros de carne e unha da estratégia desastrosa.

Bolsonaro não está morto, longe disso. Sua margem de manobra pode ter se estreitado, mas ainda é razoável. Quem detém a caneta presidencial tem condições de sair das cordas. Más só se entender o recado das pesquisas: é a vacina, estúpido!

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, em 27/1/2021. 

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