O Capitão da Morte

No dia em que o Brasil chegou oficialmente a 100 mil mortos pela pandemia de Covid-19, os presidentes do Congresso e do Supremo Tribunal Federal declararam luto oficial. Jair Bolsonaro, o presidente do outro poder, o Executivo, divulgou uma mensagem de parabéns ao Palmeiras pela conquista do Campeonato Paulista de futebol.

Parece coisa de um sujeito idiota, imbecil – e Jair Bolsonaro é sem dúvida alguma um idiota, um imbecil. Mas parece coisa pior: parece que ele faz de propósito para agredir as milhões de famílias de brasileiros que perderam entes queridos ou tiveram que conviver com a doença horrorosa.

Para chocar.

Para demonstrar que é um mesmo um sujeito grosseiro, insensível, que não está nem aí para a morte, a doença, a dor das pessoas.

Certo: “Nós, bolsonaristas, não esperamos mesmo que o presidente se mostre uma pessoa educada”, me disse outro dia uma velha amiga que desgraçadamente é isso aí que ela se declara.

Mas não parece algo muito esperto da parte de quem só pensa em reeleição – além da necessidade de proteger os filhotes contra os braços da Lei.

Ora bolas, o cara está em aberta campanha eleitoral. Viaja na mesma semana para o interiorzão do Piauí e para o Sul do Rio Grande do Sul em campanha eleitoral. Faz o papel ridículo de subir num jegue com um chapéu falso que nem a declaração de bens do filho Zero Um. Está forçando a barra para se apropriar do Bolsa Família e assim se perpetuar no poder, como o PT fez – mas, ao mesmo tempo, escolhe, a dedo, cuidadosamente, um gesto que chocará os 70% por cento dos brasileiros que não o apóiam.

Os analistas políticos que me ajudem, mas eu não consigo entender a estratégia de Jair Bolsonaro.

O que é nítido, claro, óbvio, o que até as emas do Palácio do Planalto parecem estar cansadas de saber, é que Jair Bolsonaro é o responsável direto por boa parte dessas 100 mil mortes, desses 3 milhões de casos de infecção pelo coronavírus.

Por palavras, ações e omissões, o presidente da República foi um aliado do vírus, um inimigo da saúde da população brasileira.

Desobedeceu de todas as maneiras possíveis e imagináveis a ciência, a lógica, o bom senso, as orientações da Organização Mundial da Saúde e de seus próprios ministros da Saúde (os dois que eram médicos, e não militar da intendência que não tem idéia alguma a respeito de Geografia).

Desobedeceu tudo que deveria ser obedecido – inclusive a Constituição da República Federativa do Brasil:

“Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua egulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.”

Há 5 meses Jair Bolsonaro desrespeita diariamente esses artigos – que foram muito bem lembrados no editorial do Jornal Nacional deste sábado, 8 de agosto, o mês do desgosto, exatamente o dia dos 100 mil mortos pelo novo coronavírus.

Foi uma beleza de editorial – o mais duro, firme, virulento mesmo, de que eu tenha notícia, ao longo destes 50 anos de Jornal Nacional, o principal programa jornalístico da televisão brasileira.

Que bom que ainda existe nesta fase tristíssima que o Brasil atravessa, de enfrentamento, ao mesmo tempo, da pandemia do Covid-19, da pandemia do bolsonarismo e da grave crise econômica que deixa no desemprego e na miséria milhões e milhões de pessoas: a imprensa livre e sua capacidade de apontar os absurdos deste desgoverno, de longe, de longe o pior que o Brasil já teve, desde que Pedro Álvares Cabral botou os pés na terra santa da Bahia.

É para a gente agradecer sempre às vozes lúcidas que estão aí para apontar as mazelas de Bolsonaro e do bolsonarismo.

Gente como Eliane Cantanhêde:

“O presidente Jair Bolsonaro entra para a história como o turrão que não liderou o País na hora decisiva, fez tudo errado e se aliou ao vírus, em vez de combatê-lo”, escreve ela no Estadão deste domingo, 9/8.

Como Vera Magalhães:

“Jair Messias Bolsonaro mente diariamente ao dizer que o Supremo Tribunal Federal impede o governo federal de coordenar a resposta à pandemia. Deveria ser advertido ou punido pelo próprio STF por isso, pois esta não foi a decisão da Corte. Em um País sério um presidente jamais repetiria essa empulhação sem que fosse admoestado, sequer”, escreve ela no Estadão deste domingo.

Como Rolf Kuntz:

“Sem cuidar de temas essenciais para a prosperidade do País, o presidente, centrado em objetivos pessoais, pressiona pela retomada imediata dos negócios, mesmo com o risco de mais mortes. Na sua contabilidade, esse deve ser um preço razoável pela reeleição. O lema é tocar a vida sobre os mortos”, escreve ele também no Estado.

Como Merval Pereira:

“O máximo de empatia que conseguiu exprimir foi uma frase abominável: ‘A gente lamenta todas as mortes, está chegando ao número 100 mil… mas vamos tocar a vida e buscar uma maneira de se safar desse problema’. Para quem tem a culpa maior por essa tragédia brasileira, dizer isso ao lado de um ministro interino da Saúde há mais de dois meses, enquanto a mortandade só fez crescer, é sinal de sociopatia, que, aliás, vem demonstrando em vários momentos.  Sua empatia é seletiva, foi ao Rio para o velório de um paraquedista que morreu, mas fez um passeio de jetski quando o número de mortos chegou a 10 mil. A disputa que o presidente Bolsonaro estimulou com os governadores foi uma das principais causas do desacerto do combate à Covid-19”, escreveu ele no Globo deste domingo.

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É tudo muito claro, é tudo muito óbvio. Mais do que explicado, está tudo desenhado.

Como resumiu em um post o ex-deputado Roberto Freire, presidente do Cidadania:

“Mais uma vez, editorial irretocável do Jornal Nacional. Não chegamos a 100 mil mortes por destino, mas por irresponsabilidade de quem deveria liderar, mas negou a Covid-19, negligenciou o combate à doença e sabotou as medidas de contenção. Bolsonaro responderá por essa tragédia.”

E aqui chego ao ponto que é o brejo total, final, o verdadeiro fundo do poço, o nadir, o nadir, o nadir:

Algo em torno de 25% a 30% dos brasileiros – segundo os institutos de pesquisa – não conseguem enxergar o que é óbvio. O que é mais do que explicado. O que é desenhado na lousa.

Reproduzi esse post do Roberto Freire aí no Facebook – e aquela minha velha amiga, a bolsonarista, respondeu assim: “Quê que é isso? Vcs enlouqueceram?”

Estamos numa situação tão absolutamente surrealista que entre 25 e 30% dos brasileiros acham que é loucura enxergar a realidade dos fatos!

Aqui vão as íntegras dos textos que citei acima, os textos que confortam um pouco a gente.

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Cem mil brasileiros

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo, 9/9/2020

Com mais de 100 mil brasileiros mortos e de três milhões de contaminados, é impossível não lembrar que o Brasil é vice-campeão da covid-19 e apontado no mundo inteiro como o campeão de erros na condução da pandemia. O presidente Jair Bolsonaro entra para a história como o turrão que não liderou o País na hora decisiva, fez tudo errado e se aliou ao vírus, em vez de combatê-lo.

Entre a ciência e o que Bolsonaro acha, ele ficou com o que ele acha. Entre seguir as orientações de organizações médicas do mundo inteiro e os cochichos de amigos e aliados, ele optou pelos cochichos. Entre admitir os erros gritantes e dobrar a aposta, ele dobrou. Entre se solidarizar com as vítimas e lavar as mãos, ele lavou as mãos, produzindo frases que entram não para o anedotário da história, mas para a memória internacional da falta de empatia.

“Histeria da mídia”, “gripezinha”, “e daí?”, “todos nós vamos morrer um dia”, “não podemos entrar numa neurose”, “não acredito nesses números”, “o vírus está indo embora”, “eu não sou coveiro, tá?” “quer que eu faça o quê?”, “eu sou Messias, mas não faço milagres”. Já pertinho da marca de 100 mil brasileiros mortos, Bolsonaro continuou sendo Bolsonaro e entre sorrisos, ao lado do eterno interino ministro da Saúde, deu de ombros: “Vamos tocar a vida”.

O que os amores, pais, mães, filhos, irmãos, amigos e colegas dos 100 mil brasileiros mortos acham disso? Tocar a vida? Como assim? E o presidente foi adiante: “Tocar a vida e buscar uma maneira de se safar desse problema”. Buscar uma maneira só a esta altura da desgraça? Maneira de “se safar”? Desse “problema”? Uma frase, quatro absurdos.

São falas que não condizem com um presidente no auge de uma pandemia assassina que destrói vidas, famílias, empresas, empregos, renda e a economia do País. No mundo democrático, presidentes e primeiros ministros, com poucas exceções, falam – e agem – como líderes, respeitam a ciência e os cientistas, dão rumos, apresentam soluções, admitem erros. Conferem a devida solenidade, demonstram preocupação, dor, compaixão.

No Brasil, vice-campeão da covid-19, o presidente aparece sorrindo, provocando, ironizando a desgraça. Pior: dando mau exemplo, tomando decisões absurdas. E atrapalha muito ao desestruturar o Ministério da Saúde, rasgar protocolos internacionais, jogar no lixo a única vacina possível – o isolamento social – e virar, alegremente, ridiculamente, perigosamente, garoto-propaganda de um remédio sem nenhuma comprovação, de nenhum órgão sério, de nenhum país.

Sem coordenação central, com Bolsonaro só ligado em política, guerreando contra governadores e prefeitos, viu-se o caos. A covid-19 dá um banho em cientistas, cheia de armadilhas cruéis, manhas assassinas, surpresas a cada hora. Não bastasse, ela aqui encontra o ambiente perfeito para destruição e dor.

A única bala de prata que resta para vencer uma guerra já perdida são as vacinas, que chegam ao Brasil pelos acordos entre o governo federal e Oxford e entre o governo de São Paulo e a China. É torcer e rezar, contando com uma expertise comprovada brasileira: as vacinações em massa. Se os testes forem um sucesso, se o Brasil cuidar adequadamente da logística e da compra e produção de insumos, há luz no fim do túnel. Antes tarde do que nunca.

Bolsonaro está sorrindo, confrontando, agredindo a população com expressões muito além de impróprias. Que não venha depois, com boa parcela da população vacinada e os números em queda, tentar reescrever a história e reinventar seu personagem numa das maiores tragédias do planeta. Todo mundo sabe que a culpa é de um vírus ardiloso, cheio de mistérios, que encontrou no presidente do Brasil um grande aliado.

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Tocar a vida?

Vera Magalhães, O Estado de S.Paulo, 9/8/2020

“Tá chegando em 100 mil (talvez hoje). Mas vamos tocar a vida e buscar uma maneira de se safar disso daí.” A frase, já inscrita na Enciclopédia Geral da Infâmia que Jair Bolsonaro resolveu compor durante a pandemia do novo coronavírus, foi dita por um presidente serelepe ao lado de um ministro interino da Saúde bonachão na última quinta-feira, numa das lives que ele insiste em impingir a um País traumatizado.

O número que ele previu como quem joga no bicho, depois de com a mesma sem-cerimônia dizer, lá no início da pandemia, que os mortos não chegariam a 800, não chegou naquele dia, mas o vaticínio nefasto se cumpriu neste fim de semana.

A única maneira aceitável de “tocar a vida” para que o Brasil não saia dessa tragédia ainda mais dilacerado em todas as suas dimensões é apontar as omissões, as ações criminosas, os ardis políticos e autoritários e o cinismo que nos jogaram nesse buraco, e apontar e punir em todos os fóruns cabíveis os responsáveis por ela.

A começar por esse presidente que insiste em cuspir na cara daqueles que deveria governar perdigotos de imbecilidade com relação a uma situação que não faz a menor ideia de como ao menos tentar mitigar. Ele olha para a cara de uma Nação em que mais de 3 milhões foram oficialmente infectados e 100 mil perderam a vida e dá de ombros, como se esses números num intervalo de menos de seis meses fossem toleráveis.

Nenhum governante do Brasil, dos mais nocivos que já passaram por aquela cadeira eleitos ou usurpando-a, teve em relação aos problemas que enfrentou ou provocou a desídia de Bolsonaro. Ele nem sequer finge que está tomando qualquer providência.

Jair Messias Bolsonaro mente diariamente ao dizer que o Supremo Tribunal Federal impede o governo federal de coordenar a resposta à pandemia. Deveria ser advertido ou punido pelo próprio STF por isso, pois esta não foi a decisão da Corte. Em um País sério um presidente jamais repetiria essa empulhação sem que fosse admoestado, sequer.

Jair Messias Bolsonaro mente diariamente ao dizer que cloroquina e hidroxicloroquina têm efeito para tratar covid-19. Ele atenta contra a saúde pública ao impor ao Ministério da Saúde acéfalo um protocolo sem nenhum amparo científico indicando esses remédios para casos leves e moderados. Ninguém responsabiliza o presidente e o ministro, o Conselho Federal de Medicina não vai à Justiça, e o tal protocolo anticientífico está em vigor há mais de 3 meses. O STF, o Ministério Público e o Congresso apenas assistem.

Jair Messias Bolsonaro promoveu aglomerações, cumprimentou pessoas depois de tossir e assoar o nariz com a mão, anunciou que estava coronado diante de repórteres e câmeras e tirou a máscara para isso, cumprimentou garis sem máscara já doente. Ele comete essas nojeiras diante de um País enlutado, traumatizado, desamparado. É aplaudido por um grupo de celerados e não é impedido por algum dos muitos encarregados pela Constituição de contê-lo e lembrá-lo de que ele tem de governar, e não mostrar cloroquina para a ema.

Jair Messias Bolsonaro não decretou luto oficial quando os mortos foram mil, cinco mil, dez mil, vinte mil, cinquenta mil, cem mil. Ele assiste a esse número de vítimas, pessoas que tinham vidas, sonhos, famílias e planos como quem acompanha entediado uma partida de futebol comezinha com uma daquelas camisas de time falsificadas que adora envergar.

Jair Messias Bolsonaro condena o Brasil a ser um dos piores países do mundo na chaga da covid-19 e se fia na conta cínica de que os pobres coitados socorridos com auxílio emergencial vão lhe reeleger em 2022, sua única preocupação genuína. E quem deveria responsabilizá-lo assiste a todas essas atrocidades com cara de paisagem.

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Cada morto importa

Por Merval Pereira, O Globo, 9/8/2020

Não é apenas um número chocante. Não é apenas uma barreira tristemente quebrada. São mais de cem mil pessoas mortas, exatas 100.240 até ontem, na maior tragédia da história brasileira. Para casos como esse, não é possível fazer-se o uso frio dos números, cada morto importa.

Dizer que o país está bem nas estatísticas, porque temos 471 mortes por milhão de habitantes, enquanto países como a Espanha têm 610, ou Reino Unido tem 623, é somente a demonstração de que com estatísticas é possível fazer qualquer coisa, torturando os números. Se fosse esse o caso de comparação, a Argentina tem 98 mortes por milhão de habitantes. A Rússia tem 102, e a China apenas 3 mortes por milhão de habitantes.

A triste realidade é que o Brasil é o segundo país que tem mais mortos em números absolutos, atrás apenas dos Estados Unidos, com 164.577.

Essa triste competição que estamos ganhando tem na raiz a mesma razão da crise dos Estados Unidos, governos negacionistas que se empenharam em vender a cloroquina como remédio milagroso contra a Covid-19, quando deveriam ter liderado um movimento a favor do distanciamento social, do uso de máscaras, da quarentena e, nos casos mais graves, do lockdown.

Donald Trump, com uma possível derrota nas eleições se aproximando, tenta se recuperar usando máscara, depois de meses preciosos sem usá-la, e já cunhou um bordão patético a essa altura: “Patriota usa máscara”. Bolsonaro, nem depois de pegar a Covid-19, se anima a fazer uma campanha nesse sentido.

O máximo de empatia que conseguiu exprimir foi uma frase abominável: “A gente lamenta todas as mortes, está chegando ao número 100 mil… mas vamos tocar a vida e buscar uma maneira de se safar desse problema”. Para quem tem a culpa maior por essa tragédia brasileira, dizer isso ao lado de um ministro interino da Saúde há mais de dois meses, enquanto a mortandade só fez crescer, é sinal de sociopatia, que, aliás, vem demonstrando em vários momentos.

Sua empatia é seletiva, foi ao Rio para o velório de um paraquedista que morreu, mas fez um passeio de jetski quando o número de mortos chegou a 10 mil. A disputa que o presidente Bolsonaro estimulou com os governadores foi uma das principais causas do desacerto do combate à Covid-19.

Essa briga de poder aconteceu porque Bolsonaro queria impor suas idéias, como o uso de cloroquina e a abertura das cidades para não prejudicar a economia. O mais inacreditável foi a briga de Bolsonaro com os ministros da Saúde, Luiz Mandetta e Nelson Teich, querendo impor suas vontades contra a orientação cientifica internacional.

A crise pessoal de Bolsonaro só acabou quando resolveu colocar o General da ativa Eduardo Pazuello na interinidade permanente à frente da Saúde. Como cultor da hierarquia e jejuno em medicina, o General aceitou tornar a cloroquina um medicamente oficial do SUS para combater a Covid-19, o que nenhum dos antecessores, médicos que tinham uma reputação a zelar, aceitou.

O Brasil passou vários dias com uma média de mil mortes, já temos proporcionalmente mais mortos que os Estados Unidos, e não é improvável que em algum momento passemos a ser o país com mais mortes do mundo, em números absolutos. Se é que já não passamos. A estimativa de vários estudos é de que a subnotificação dos infectados por Covid-19, hoje perto de 3 milhões de pessoas, pode chegar a 14 vezes mais.

O número de mortes que hoje nos assombra pode ser 27% maior que os 100.240 oficiais, isso porque as mortes por síndrome respiratória aguda grave (Srag) não apenas aumentaram muito em relação à média, como muitos casos não tiveram o agente causador identificado, o que leva as autoridades médicas a crerem que teriam sido provocadas pela Covid-19.

Sem falar nas periferias e favelas das grandes cidades, e no Brasil profundo, que não têm atendimento médico devido. Um dos maiores problemas brasileiros no combate à Covid-19 foi a falta de testagem, sem o que não se pode ter uma idéia exata de como está a evolução da doença. Este é um problema que a maioria dos países europeus e os Estados Unidos não têm.

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A reeleição e a arte de tocar a vida sobre a morte

Rolf Kuntz, O Estado de S.Paulo, 9/8/2020

“Vamos tocar a vida e buscar uma maneira de se safar desse problema”, disse o presidente Jair Bolsonaro, depois de mencionar as quase 100 mil mortes confirmadas até a noite de quinta-feira. Além de agredir o idioma com aquele pronome “se”, ele voltou a exibir uma caixinha de cloroquina e culpou governadores e prefeitos pelo aumento do desemprego. Não especulou sobre quantas pessoas mais teriam morrido se tivesse havido menor empenho no distanciamento social. Disse lamentar as mortes e talvez alguém tenha acreditado nisso. “Tocar a vida”, no caso de Bolsonaro, significa retomar a atividade sem levar em conta o risco sanitário. Durante mais de um ano ele havia ignorado o mau estado da economia, deixando o assunto para seu “posto Ipiranga”. Terá havido uma súbita iluminação, talvez causada por algum vírus ainda desconhecido?

Cuidar da vida significa também cuidar da reeleição. Mortos são excluídos do colégio eleitoral, pelo menos quando a lei prevalece. “Não sou coveiro”, respondeu o presidente ao ser confrontado, numa entrevista, com a mortandade causada pela pandemia. “Empatia”, palavra muito repetida nos últimos meses, parece continuar fora do vocabulário presidencial. Não faltou atenção, no entanto, a negócios e votos.

Políticas emergenciais foram implantadas em dezenas de países, nos últimos meses, para atenuar os efeitos da pandemia. Centenas de bilhões de dólares foram rapidamente canalizados no mundo rico para ações de saúde, apoio às empresas, defesa do emprego e socorro aos pobres. Planos mais modestos foram adotados nas economias emergentes e em desenvolvimento.

Nem os países mais pobres ficaram sem proteção. O Fundo Monetário Internacional (FMI) mobilizou cerca de 1 trilhão de dólares para ajuda. Em pouco tempo foram aprovados desembolsos para cerca de uma centena de países. Parte desses empréstimos provavelmente nunca será quitada, mas isso é parte do jogo. Em todos os casos a ajuda foi vinculada a ações de saúde e de sustentação econômica.

As medidas aplicadas no Brasil são parecidas, em pontos essenciais, com aquelas encontradas em muitos outros países. De modo geral, houve estímulos ao crédito e aumento do gasto público. Esse aumento foi combinado, em alguns casos, com alívio temporário de impostos. Um levantamento dessas políticas foi divulgado há semanas pela OCDE, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico.

A maioria das pessoas, no Brasil e provavelmente em muitos outros países, desconhece esses fatos. Ignora, da mesma forma, o sentido econômico do auxílio emergencial. Essa ajuda é vital para as famílias, obviamente, mas é também muito importante para as empresas, pequenas, médias e grandes, produtoras e distribuidoras de bens essenciais.

A estratégia econômica torna-se interpretável por milhões de pessoas como ato de bondade. Isso facilita faturar politicamente, como se fosse um gesto humanitário, um ato explicável pela mais prosaica racionalidade econômica. Repetido por alguns meses, um auxílio de R$ 600 pode converter-se em fonte de gratidão e de votos. Erros cometidos no combate à doença – e até agravados pelo desprezo à vida de milhares – tornam-se irrelevantes ou invisíveis. Lucra, portanto, quem se ocupa prioritariamente da reeleição em 2022.

Muitos talvez nem tenham percebido os erros e as falhas de liderança, embora possam ter ocasionado a morte de pessoas próximas. Nos Estados Unidos e na Europa Ocidental, onde os programas de ajuda emergencial foram muito amplos, erros no combate à pandemia saíram menos baratos para os chefes de governo. Serão menos dotados de gratidão os europeus e americanos?

Especialmente notável, no caso brasileiro, é o repentino interesse do presidente pela economia e pela sorte dos trabalhadores. Esse interesse, nunca manifestado nos primeiros 14 ou 15 meses de mandato, só apareceu depois de reconhecida a presença do novo coronavírus.

Em 2019 a economia cresceu 1,1%, menos que em qualquer dos dois anos anteriores, mas o assunto jamais pareceu preocupar o presidente da República. No trimestre móvel encerrado em fevereiro os desempregados eram 11,6% da força de trabalho, mais que o dobro da média da OCDE, e a aparente indiferença permaneceu. Ainda em fevereiro, a produção industrial, embora 0,5% maior que a do mês anterior, continuou 0,4% inferior à de um ano antes e 16,6% abaixo do recorde de maio de 2011, no primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff.

A crise industrial vem de longe e se agravou nos últimos oito anos, mas permanece invisível na agenda presidencial e na da equipe econômica. Não se resolverá esta crise com a mera redução de encargos sobre a folha de salários e com a eliminação de direitos trabalhistas, bandeiras do ministro da Economia. Sem cuidar de temas essenciais para a prosperidade do País, o presidente, centrado em objetivos pessoais, pressiona pela retomada imediata dos negócios, mesmo com o risco de mais mortes. Na sua contabilidade, esse deve ser um preço razoável pela reeleição. O lema é tocar a vida sobre os mortos.

9/8/2020

Este post pertence à série de textos e compilações “Fora, Bolsonaro”. 

A série não tem periodicidade fixa.

Jairzinho paz e amor é genocida igual ao de verdade, (23)

Se fosse um ser humano mais ou menos normal, não aguentaria enfrentar tangtas críticas. (22)

O que vai parar o louco perigoso, o terrorista? (21)

Bolsonaro asfixia o sistema de saúde (20)

2 Comentários para “O Capitão da Morte”

  1. Precisamos é encontrar um modo rápido e legal de nos safarmos desse capitão!

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