A má (e a boa) vontade com o presidente

A premissa do professor Washington Araújo, em seu artigo da semana passada neste Observatório (*), não é nada republicana. O título do artigo é “A má vontade com o presidente“. Por que motivo, como indaga um dos comentaristas, a imprensa precisa ter boa vontade com o presidente? Se o Washington Post não tivesse “má vontade” com Richard Nixon provavelmente ele não teria sido obrigado a renunciar à presidência dos Estados Unidos.

O problema é quando a “boa” ou a “má” vontade são conceitos chamados a substituir a normatividade republicana e se insiste em confundir o papel da imprensa com a adulação ao poder. A imprensa existe para vigiar o poder, e não o contrário, como parecem crer os adoradores do presidente, que confundem – como ele, aliás – os seus estratosféricos índices de aprovação com a concessão de um salvo conduto para que ele faça o que quiser com a República a cujos cuidados está entregue, mas que não lhe pertence.

O professor Washington, mestre em comunicação, ainda fala em “barões da imprensa” como se estivéssemos no século 19 e como se ainda não tivesse chegado às universidades a informação de que as modernas empresas de comunicação estão nas mãos de profissionais treinados para produzir dividendos para seus patrões, e não para dirigir fabulações ideológicas a favor ou contra quem quer que seja.

Morta e enterrada

Isolados no minarete universitário, resguardados da inclemência da batalha diária pela sobrevivência, os intelectuais “ideológicos” alimentam as suas belas fantasias, das quais a mais longeva é a da luta do Bem contra o Mal. O bem é o lado deles, o mal é do lado dos outros.

Em sua narrativa, claro, está a proverbial fábula esopiana do pobre migrante nordestino que venceu a tudo e a todos, afastou todos os obstáculos de sua vida, e se impôs ao mundo como “o cara” que restabelecerá a verdade, a bondade e a justiça na face da Terra. Contra esse monolito do bem a carga das brigadas ligeiras do mal, das quais, claro, a malvada imprensa faz parte, com sua carga de preconceitos de raça, de origem social, de instrução.

Não se pode deixar de observar, ainda que com certo espanto, que os arquétipos que os intelectuais constroem para sustentar suas teorias têm uma constrangedora semelhança com a simplificação do mundo que constitui o universo do fabulário que os adultos constroem logo depois da fase da lactação materna para entreter suas crianças. Lobos maus, vovozinhas, princesas, gatas borralheiras, gatos de botas, seres liliputianos – todos revestidos com o verniz legitimador da sapiência universitária.

O presidente não estudou (não importa que tenha sido por escolha própria e não por algum obstáculo intransponível imposto pela condição de retirante miserável), mas seu gênio “nato, carismático” lhe permite abrir “clareiras do pensamento”, o que lhe faculta “destrinchar o código de comunicação com as raízes do Brasil”. Um superlativo de adulação que talvez só tenha precedentes em outros regimes onde os guias geniais dos povos tomavam o lugar das instituições e agiam a falavam por elas.

O professor Araújo, com a proverbial falta de familiaridade com que os intelectuais lidam com os fatos e os números, dispõe-se a procurar as “raízes” do “preconceito” que faz o “baronato” da imprensa tratar o presidente com tanta má vontade.

Seria por que o presidente não procura, “como acontecia há menos de um decênio”, os barões da imprensa para mostrar seus projetos antes de fazê-lo aos seus próprios ministros e partidários? Mas o presidente não os procura por causa de sua extraordinária independência e altivez ou porque a fábula dos barões da imprensa está morta e enterrada desde que os órgãos de imprensa se consolidaram como empresas capitalistas onde mais vale um Ebitda robusto que um editorial devastador?

Objetiva e profissional

Depois o professor Araújo faz incríveis contas com os R$ 700 milhões de verba publicitária que o governo deixou de distribuir entre 499 afortunados e passou, democraticamente, a destinar a 5.297 veículos, como se isso tivesse deixado certa parte imprensa “de cara feia, amuada”, porque o governo convidou “mais gente a pegar a sua fatia do bolo”.

O professor lida com números que lhe parecem gigantescos sem atinar com o quase ridículo de sua ordem de grandeza. Se os R$ 700 milhões fossem distribuídos ainda entre os 499 sortudos, caberia a cada um deles, em média, pela hipótese ad absurdum de que fosse igualmente distribuída, R$ 1,4 milhão por ano. Já a democrática distribuição entre os 5.297 novos eleitos daria, na mesma hipótese, em média, a cada um, a fabulosa quantia de R$ 132 mil por ano.

Aplicando a hipótese 1, da concentração de recursos, é de se imaginar o que significa, para as grandes redes de TV e os quatro grandes jornais, cujo faturamento ronda a casa dos bilhões, a falta de quase R$ 1 milhão e meio no seu faturamento anual. Em média, pelo menos nos jornais, a participação da propaganda do governo no total da receita publicitária não ultrapassa os 3% a 4% do total. O professor conjectura: “A gritaria é grande, a cara feia, amuada, toma lugar no rosto que antes mantinha monolítico sorriso de aquiescente aprovação…” (e por aí vai). Alguém, além do professor, ouviu essa gritaria? Onde ela foi estampada? Quem a registrou? Quando? Em que termos?

Depois, o professor passa a fazer uma radiografia do que foi o repasse de verbas publicitárias do governo federal e das estatais no ano de 2009 e conclui, com mal disfarçada indignação, que 60% das verbas de televisão (que compõem 60% do total das verbas) foram destinados à Rede Globo, e que os três principais jornais do país – Globo, Folha e Estado – “abocanharam o grosso dos recursos do setor” (os jornais receberam 9% das verbas totais). Os critérios técnicos de audiência dos veículos, usados universalmente para distribuição de verbas publicitárias, devem palpitar no coração do professor como mais uma prova da fria e injusta irracionalidade ideológica do capitalismo.

E o “consórcio da grande imprensa”, como ele a chama, injusto e insensível, nem por isso abre seu coração e deixa de lado a sua “má vontade” com o governo. Má vontade que, segundo ele, não atinge a grande imprensa mundial, que não passa 30 dias “sem publicar extensa matéria laudatória ao Brasil como potência do presente e do futuro imediato” e a Lula “como maior líder político da atualidade ou dos últimos dez anos”.

Está claro que o professor faz uma leitura seletiva do que a imprensa mundial publica, porque se lhe prestasse uma atenção menos ufanista, perceberia que ela costuma contrabalançar os devidos elogios com as necessárias críticas, com uma postura objetiva e profissional que escapa aos critérios “laudatórios” que ele tanto admira. É provável que ele esteja confundindo os abundantes cadernos de informação publicitária que, aqui como lá, os jornais dedicam a empresas, setores econômicos ou países promissoramente emergentes com reportagens ou artigos de interesse e inspiração puramente jornalísticas.

Cinco multas

A comovente, ilimitada e frenética atração que a persona do presidente exerce sobre o professor faz com que ele exija da imprensa brasileira o comportamento de fã clube, para repercutir todas as menções e todas as condecorações internacionais que ele tem recebido. Não lhe basta o registro honestamente factual que a imprensa não lhe tem negado. Ele quer êxtase nas notícias, aplausos orgiásticos, entusiasmos febris. Afinal, a história de vida… (e tome de novo a história de vida do nosso herói, que não poupou nem as salas de cinema, que, por sinal, não foram tomadas de assalto pelos fiéis, ao contrário do que previram os áulicos e os capitalistas que investiram na mal sucedida peça de culto à personalidade).

Levado pelo seu incontido entusiasmo, o professor Araújo se compromete em sérios arranhões à sua própria credibilidade, ao exagerar:

“Não faz muitos anos que a imprensa entrava em êxtase ao noticiar que um presidente brasileiro seria agraciado com o título de doutor honoris causa concedido pela Universidade de Coimbra. As fotos da solenidade acadêmica preencheriam páginas centrais, as manchetes trariam a marca do deliberado ufanismo como se estivessem noticiando ser um brasileiro o primeiro humano a pisar na superfície de Marte”.

Qualquer pessoa que se disponha a consultar as coleções de jornais do passado recente a que Araújo se refere poderá ver que a sua descrição hiperbólica não corresponde aos fatos. No máximo, terão sido publicadas discretas matérias gélida e estritamente factuais sobre o evento, mesmo porque a imprensa brasileira, desde a segunda metade do século passado, profissionalizou sua linguagem e perdeu a retórica solene e grandiloqüente que a caracterizava antes da reforma técnica e conceitual pela qual passou. Se houve uma “marca de deliberado ufanismo”, o professor poderia citar fatos e exemplos comprováveis, em vez de apelar apenas às suas impressões subjetivas, claramente influenciadas pelo viés ideológico que lhe distorce a visão.

A grande imprensa , diz ele, “faz força para entortar o que é direito”. Num golpe só, o professor elimina a necessidade do contraditório e já estabelece, para que fique bastante claro, o que é direito – vejam bem, o que é direito, não o que lhe parece direito. Para defender a política externa, fala deslumbrado do novo “protagonismo” brasileiro, e volta a enumerar os extraordinários sucessos econômicos do “retirante nordestino”, ignorando inteiramente a relação causa/efeito dos processos e dos motivos que lhe deram causa, como se mostrar ao mundo um país “com fundamentos econômicos sólidos e com suas contas inteiramente sob controle e, mais que isto, administráveis” fosse conseqüência única da ação de um solitário líder iluminado pela graça de Deus. Ele deliberadamente subtrai da narrativa o fato de que a obra fundamental do governo Lula foi simplesmente ignorar a plataforma do partido pelo qual se elegeu e andar reto, sem se desviar um milímetro sequer, pela senda já aberta.

E lá volta o professor a defender com dedicada paixão o presidente de acusações que ninguém lhe fez, pois se ele é “praticante contumaz de crimes gramaticais, vítima de adjuntos nominais”, isso parece incomodar mais o próprio Araújo do que as demais pessoas. Não consta que o TSE o tenha multado cinco vezes por agredir a gramática, mas sim por violar as leis em vigor no país que ele preside.

Linha tênue

A insistência em confundir os índices de aprovação do governo com a concessão de uma carta branca ao governante para ignorar a lei – uma espécie de licença para delinqüir – é um dos sintomas mais graves que a idolatria e o personalismo podem trazer à saúde da democracia. O fervor com que o professor Araújo defende a boutade de Lula de que não lê jornais porque eles lhe dão azia, e a verdadeira veneração pelos acertos – mas principalmente pelos erros – do presidente, que exala de todo o seu texto, mostram que ele está disposto não só a dar aos fatos um viés ideológico que o dispensam da fidelidade aos próprios fatos, como também a alimentar a mitologia de que ele foi “impiedosamente atacado, ridicularizado, menosprezado pelos guardiões do culto acadêmico”, quando foram exatamente esses que criaram a alimentaram o mito do homem sem nódoa e sem mácula – ao mesmo tempo Quixote e seus próprios moinhos de vento.

Lula não é uma vítima da imprensa, mas uma criação dela. Quem não acredita, pergunte ao próprio Lula.

O professor recita, no final do seu artigo, que “chegará o momento em que não será mais necessário clamar por um jornalismo plural, responsável, sério, veraz, eqüânime, vacinado contra os males do preconceito e da hipocrisia moral que ganha terreno em nossas relações sociais”.

Para quem reclama da “má vontade” da imprensa com o presidente, seria o caso de perguntar o que ele diria de uma imprensa que cumprisse o seu dever verdadeiramente republicano de independência, coragem, seriedade e veracidade e pedisse, com indiscutível legitimidade, o devido processo de impeachment do presidente da República por crime de responsabilidade quando um publicitário confessou na CPI que recebeu pagamento pelo seu trabalho na campanha eleitoral em paraísos fiscais.

O que diria o professor? Que o presidente estava sendo vítima de seus adjuntos adnominais ou de seus crimes contra a gramática?

A linha entre a boa vontade e a má vontade da imprensa, como se vê, pode ser mais tênue do que sonha a nossa vã filosofia…

Este artigo foi originalmente publicado no Observatório da Imprensa

4 Comentários para “A má (e a boa) vontade com o presidente”

  1. A referência a Watergate é fascinante. Será que se, naquele plantão meio sonolento, o Washington Post tivesse mandado para cobrir o arrombamento do comitê democrata, em vez de Bernstein e Woodward, uma dupla tipo Paulo Henrique Amorim-Ricardo Kotscho, a história poderia ter sido toda diferente?

  2. Rídiculo este texto. Vaia pelo jeito desaprendeu de vez o ofício de escrever. Em que pese a comparação mas o texto por ele criticado é superior em estilo, argumentação e inteligênciaa esse que se pretende ser crítico. O blog deveria destacar aqui o texto do professor Washington Araújo porque é realmente muito bem escrito e, mesmo com elegancia, não deixa pedra sobre pedra no castelo que os contumazes inimigos do presidente tentam por todos os meios construir.

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