Da minha agenda:
Se eu tivesse um Rosebud, seria – não tenho dúvida alguma – a velhíssima máquina de costura Singer da minha mãe.
Claro que é uma pretensão ridícula, absurda, falar em um Rosebud para mim, já que sou, como definiu numa discussão no Twitter anos atrás um colega de primeiro ano de ECA-USP, “um jornalista insignificante”.
Mas é que nisso me fio em Lady Jane.
Depois de ter vivido 68 gloriosíssimos anos, de ter sido símbolo sexual, musa do movimento anti-Establishment, dama da ginástica do fitness na TV, além de uma das melhores atrizes de cinema de todos os tempos, Lady Jayne Seymour Fonda escreveu, no final de sua esplendorosa biografia, em que até o título é inteligente – Minha Vida Até Agora: “Gostaria que todo mundo escrevesse sobre sua vida. Não necessariamente para ser publicado, mas para ser forçado a um mergulho íntimo no seu ser. (…) Colocar as idéias no papel ajuda a aprender como usar o tempo que lhe resta. É como tornar-se um arqueólogo, peneirando a areia e a terra para descobrir quem você é. Isso também é um grande presente para seus filhos e outros parentes.”
Um dia ainda vou escrever sobre minha vida de maneira organizada, cronológica – como um arqueólogo do meu passado. Um dia ainda escrevo um romance – diz Jules, em Jules et Jim, de Truffaut – em que os personagens serão insetos.
Voei um pouquinho, mas a verdade é que Lady Jane – que nunca teve a oportunidade de trabalhar com Truffaut, embora tenha vivido na França e atuado em filmes franceses – tem toda razão quando diz que todo mundo deveria escrever sobre sua vida.
E, se todo mundo deveria escrever sobre sua vida, todo mundo poderia ter o direito de ter um Rosebud – mesmo os jornalistas mais insignificantes como eu.
Meu Rosebud seria a velha máquina Singer da minha mãe.
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Não me lembro dela na nossa primeira casa em Belo Horizonte, na Rua Magnólia, Carlos Prates, nem no apartamento da Rua do Ouro, diante da Ramalhete, Serra, para onde nos mudamos em julho de 1957. Mas lembro muitíssimo bem dela no barracão da Rua Edgard Coelho, para onde minha mãe e eu nos mudamos depois do casamento do Arnaldo, lá por 1961.
Era mais ou menos com o da foto . Podia ser colocada para dentro do tampo, e então se transformava numa mesinha de trabalho perfeita.
Foi na mesinha que era a máquina Singer que comecei a escrever na vida.
Foi naquela mesinha que estudei ao longo dos cinco anos de Colégio de Aplicação. Foi com os cadernos apoiados nela que escrevi meus primeiros diários, minhas primeiras cartas aos amigos e em especial às amigas, e minhas três ou quatro tentativas de noveletas, que guardo até hoje, é óbvio, em algum lugar deste apartamento, embora não chegue perto delas nem que a vaca tussa muito insistentemente.
Assim como não me lembro da máquina de costura Singer antes dos meus 11 anos, também não me lembro dela depois que, quando eu acabava de fazer 16, a família resolveu me mandar e à minha mãe para Curitiba. É bem provável que a máquina-mesinha tenha ido também para o Guabirotuba, mas, diacho, não me lembro dela lá.
Tenho vaga, vaguíssima lembrança de que a velha Singer fez parte do pequeníssimo mobiliário do apartamentinho de minha mãe na Martiniano de Carvalho, Bela Vista. Lá, o objeto que eu usei para aprender, sonhar e tentar uma subliteratice, serviu para minha mãe – que na juventude fantasiou riquezas, casou errado e acabou a vida pobre pobre de marré de cy, tadinha – trabalhar, fazendo uns consertos de roupas que garantiam uns trocadinhos a mais que as mesadas apertadas dos filhos.
Quando minha mãe morreu, eu não quis saber de nada das coisas que havia no apartamento da Bela Vista. Pelo que me lembro, minha irmã dispôs da maior parte dos objetos. Não tenho a menor idéia do que ela terá feito da máquina de costura-mesinha em que escrevi meus primeiros textos.
Foi besteira minha. Deveria ter ido lá, logo depois da despedida de minha mãe, e pegado para mim meu Rosebud.
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Hoje minha filha promoveu uma gigantesca mudança no quarto de Marina. Gigantesca, radical. Saiu o berço, saiu a cama auxiliar. Entrou uma nova cama, com grade parcial, e uma bicama abaixo para uma amiga dormir junto. Com isso se abriu um grande espaço. O quarto cresceu bastante.
Não cabe mais a cadeira de balanço – linda, gostosíssima – que é minha e que minha filha pediu emprestada para a fase de amamentação de Marina.
Desde praticamente que nasceu e até os dois anos de idade, Marina sentou-se no colo da mãe naquela cadeira de balanço antes de dormir – primeiro mamando no peito, depois tomando a mamadeira pré-sono.
Ao lado da cadeira de balanço fica uma mesinha em que minha filha tem uma foto dela entre a mãe e o pai. Marina passou os dois primeiros anos de sua vida ao lado de uma foto do avô que ela vê sempre e da avó que ela não teve a chance de conhecer.
Agora a cadeira ficou inútil – um trombolho ocupando espaço sem sentido no quarto da pequena.
Vai voltar para a minha sala, para o mesmo lugar que ocupava antes de Marina nascer. E Marina vai brincar muito com ela, nas visitas aos avós que, tenho a certeza, serão cada vez mais mais comuns.
Aí brinquei com Fernanda que vou deixar de herança para Marina a cadeira de balanço em que ela adormeceu nos primeiros dois anos de vida.
Seguramente ela terá outros troféus.
Mas essa cadeira que deixo para ela de herança é um belo Rosebud.
9 de abril de 2015