Éramos só homens, centenas, e apareceu a mulher autónoma, senhora de si. Descobri a mulher autónoma, a que decide sobre a sua vida e sobre a sua solidão, aos 16 anos.
Chamávamos-lhe o cinema dos sargentos e era num quartel, perto do colégio dos Maristas. Mesmo com pais civis e desarmados, a tropa deixava-nos entrar. Nessa noite, ao ar livre, num cinema que, se não fossem as filas e as cadeiras, podia muito bem ser um drive-in americano, apareceu na tela uma mulher. Conduzia uma dessas indiferentes stations yankees. Vinha sozinha e ainda ficou mais sozinha depois de telefonar ao marido a contar que estava grávida, mas não ia voltar para casa.
Sabia que ia para oeste, para a Califórnia, o mais oeste com que uma mulher de Long Island pode sonhar. Os meus 16 anos ficaram a tremer, encantados. Nunca tinha visto aquelas estradas, motéis como aqueles, cabines telefónicas daquelas. Miúdo dos trópicos, não sabia que podia chover assim, ininterrupta, leve, levemente. O filme era Chove no meu Coração e uma mulher, Shirley Knight, atravessava manhãs de bruma, tardes de sol, noites de nevoeiro.
Que bonita que era Shirley Knight! Tinha uma beleza segura, adulta de 30 anos – podia ser professora, uma vizinha, a dona de uma loja. Abriu uma ferida no meu coração adolescente. Fez de mim uma “pessoa da chuva”, uma “rain people”, título que o realizador, um desconhecidíssimo Francis Ford Coppola, dera ao filme.
A boca de polpa madura de Shirley encontra dois homens na viagem. Quis ser os dois. Quis ser o mais obediente dos homens, tal qual James Caan, a quem uma joelhada no cérebro de futebolista pôs a cabeça em papas. E quis ser Robert Duvall, polícia de trânsito, uma potente moto entre as pernas, o polícia que num flash, até por se chamar Gordon, se propõe salvar Shirley se ela o invocar.
Três anos depois, nem tinha 20 anos, conheci Charlotte, a segunda mulher autónoma da minha vida. Casada e mãe de filhos, poderia ela amar um homem mais jovem, sem préstimo? Charlotte é a mulher que, por um homem sem qualidades, deixa mesmo tudo. Ensina-o: como alugar um quarto, como ser digno de um amor secreto.
Charlotte nunca saiu das páginas de um livro. Deambula pelo sol e neve, pelo mar e pelas margens do Mississípi de Palmeiras Bravas, romance de William Faulkner. Ninguém se atreveu a fazer dele um filme.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
The Rain People no Brasil é Caminhos Mal Traçados.