Um presente, uma surpresa, uma coisa fantástica

“Em janeiro de 1954 minha avó chegou com uma revista e me disse; – ‘Olha o que eu encontrei na banca de jornal. Vai sair todo mês e eu vou comprar para você.’ Era o primeiro exemplar da revista CINELÂNDIA, com a Terry Moore na cada, de rabo de cavalo, shortinho e blusa xadrez amarrada na cintura. Depois de uns meses, a edição passou a ser quinzenal e a promessa continuou até o último exemplar, em meados de 62!

“Infelizmente, tive que ir me desfazendo da coleção. A casa foi ficando pequena para tantas coleções, livros, LPs. Fui doando minhas revistas e guardei seis aleatoriamente para recordação. São essas seis revistas que quero lhe dar. Tenho certeza de que você vai adorar.”

***

Parece um conto, uma crônica de Natal. Um trecho de um filme de Frank Capra, o mais humanista de todos os diretores, o sujeito que acreditava que a humanidade tinha lá alguns lobos maus, mas era uma invenção que deu certo.

É uma mensagem que recebi no começo de janeiro deste ano em que chego aos 75 – e de uma pessoa que nunca vi pessoalmente. Uma pessoa que se tornou minha amiga via Facebook, e que passei a admirar – Gilda Schmidt.

Pode uma coisa destas?

Pois é. A gente acha que é coisa de ficção – mas existe.

***

Li alguns exemplares da Cinelândia, é claro. Acho até que tive alguns deles, em Belo Horizonte, ali no começo dos anos 60 – essa expressão, diacho, que até dá música, como mostraram Sá, Rodrix e Guarabyra –, quando eu morava na Rua do Ouro, de frente para a Ramalhete, rua que também dá música, como mostrou o Tavito.

Eu apostaria que não há nenhum brasileiro que era jovem nos anos 60 e gostava de cinema que não tenha lido a Cinelândia.

Não era papo cabeça, teoria, considerações, sociologia, política, filosofia, como os Cahiers du Cinéma que fizeram a cabeça dos críticos de cinema do mundo inteiro, inclusive, é claro, os de Belo Horizonte, excelentes críticos, que davam as aulas nos cursos sobre cinema que frequentei com a devoção de crente fiel. Não, não, não – era uma revista para o público que gostava de saber dos filmes, sim, mas também sobre a vida dos artistas, as fofocas sobre eles, quem namorava quem. E queria ver fotos, montes de fotos – se pudesse ser de belas atrizes de shortinho então… Uma parente da Revista do Rádio – que a gente também folheava, às vezes até comprava. A dos Mexericos da Candinha de que falava o Roberto no disco Jovem Guarda, de 1965, o que abria com “Quero que vá tudo pro inferno” e tinha, entre outras delícias, “Pega Ladrão” e “Não é Papo pra Mim”.

***

Hoje Gilda me avisou que amanhã me mandará os seis exemplares que sobraram da coleção de Cinelândia que a avó dela fez. Estou curiosíssimo, é claro.

Sei bem pouco da Gilda. Sei que, diferentemente de mim, que sou um imigrante em São Paulo (legalizado, é verdade, portador de greencard há décadas, pai e avô de paulistanas da gema), é daqui mesmo, esta cidade que é como o mundo todo, como diz o Caetano, a cidade que eu escolhi para viver e, diabo, me tratou e trata bem demais… Do Tatuapé, a terra santa para os corinthianos. Da minha geração. Dotada pelo Criador e pela vida das santas bênçãos do bom senso, da lucidez que nos distancia dos extremos que polarizam este país e este planeta que teimamos em destruir, embora não haja planeta B.

Mas sei que é uma pessoa capaz de oferecer um presente a um sujeito que ela jamais viu na vida – só porque percebeu que o sujeito gosta de determinada coisa.

Simples assim. Por pura gentileza. Pura e simples gentileza.

Existir uma Gilda Schmidt, mesmo nestes tempos tão absolutamente tenebrosos, é um danado de argumento para dizer que Frank Capra e os demais believers estão certos, e não os cynics.

A humanidade, afinal de contas – quem sabe? – talvez não tenha sido uma invenção que não deu certo.

4/2/2025

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *