Quem inventou o amor

O baiano de Salvador mas carioca de quase a vida inteira Dorival Caymmi cantou que não foi ele, nem tampouco a mulher que ele amava, que inventou o amor. Sua certeza era de que quem inventou o amor não foi ele, nem ninguém.

O pernambucano Geraldo Azevedo, de Petrolina, aquela cidade que fica grudada na baiana Juazeiro, onde nasceu João Gilberto (e onde eu estive, euzinho, que tenho bolas de ferro nos calcanhares), respondeu ao mestre de grande parte dos compositores brasileiros, décadas depois, que uma coisa é certa: quem inventou o amor teve certamente inclinações musicais.

Fiquei pensando nisso porque a primeira música que ouvi no dia, na Rádio Sérgio Vaz, foi “Inclinações Musicais”, a pérola de Geraldinho Azevedo, na voz inconfundível, suave, doce, terna, única, da capixaba de nascimento e carioca da gema Nara Leão.

***

Tenho ouvido música muito pouco, muitíssimo menos do que ouvia antes. Mas quando ouço, em geral no final da noite, baixinho pra não incomodar os vizinhos, que eu não sou como o Fábio De Domenico, ouço MPB, folk ou a Grande Música Americana – e sempre, sempre, sempre fico deslumbrado, mesmerizado, boquiaberto, queixo caído com tanta beleza.

Outro dia, por exemplo, não sei por que cargas d’água, me lembrei de Moreira da Silva. Mais especificamente, de Kid Morengueira, de “Rei do Gatilho”. Meu, o que é aquilo, aquela letra de Miguel Gustavo? Quanta criatividade, quanta inventividade! É um filme, é a narração de um filme! Um bangue-bangue, um duelo no saloon:

“Houve um suspense de matar o Hitchcock / E em close-up pro bandido fui chegando / Parou o show e as bailarinas desmaiaram / Fugiram todos só ficando ele e eu / Ele atirou, eu atirei, e nós trocamos tantos tiros / Que até hoje ninguém sabe quem morreu / Eu garanto que foi ele, ele garante que fui eu.”

Não sei por que raios me lembrei do Kid Morengueira e seu “Rei do Gatilho”, mas botei pra tocar (baixinho pra não incomodar os vizinhos) e de repente Mary e eu estávamos cantando junto com Moreira da Silva a canção gravada em 1961!

Canções que não são destes tempos de hoje.

“Nem Eu”, a canção de Dorival Caymmi, aquela obra-prima, é de 1952. Dois anos, apenas, depois que eu nasci – sete anos antes de Mary nascer.

Meu Deus, que maravilha o poema do baiano-carioca:

“Não fazes favor nenhum / Em gostar de alguém / Nem eu, nem eu, nem eu. / Quem inventou o amor / Não fui eu / Não fui eu, não fui eu / Não fui eu, nem ninguém. / O amor acontece na vida / Estavas desprevenida / E por acaso eu também”.

Não me lembro exatamente, mas me parece que Clarice Lispector, aquela carioca nascida na Ucrânia, escreveu que essa coisa de se estar distraído é fundamental para que nós, bípedes desplumados, encontremos o amor. Para viver, é sempre, sempre preciso estar atento e forte, como bem nos disseram os baianíssimos Caetano e Gil – mas, diacho, para que a gente se apaixone, é bom estar desprevenido. Não procurando, não ficando atrás loucamente. É quase fundamental, quase necessário, condição sine qua non, como diria minha mãe, estar desprevenido.

Amar é… Houve uma época, ali pelos anos 70, acho, em que isso era uma mania, dizer o que significa amar. Amar é… e ainda vinha alguma definição.

Muito antes disso, a definição “Love is a many-splendored thing” foi o título da canção da dupla Paul Francis Webster-Sammy Fain, tema do filme do mesmo nome, no Brasil Suplício de uma Saudade, que eu vi garoto no Cine Tamoio, de Belo Horizonte, nunca tive a oportunidade de rever e não esqueci jamais.

“Love is a many splendored Thing / It’s the April rose that only grows in the early Spring / Love is nature’s way of giving a reason to be living / The golden crown that makes a man a king.”

Quando era jovem, Bob Dylan escreveu que “love is just a four-letter word” – e aí é preciso saber que four-letter word não significa palavra de quatro letras, e sim um palavrão. Segundo o Cambridgde Dictionary, “a short word that is considered to be extremely rude and offensive”.

Na sua encarnação como compositora (e, diacho, como eu gostaria de ser organizado o suficiente para fazer um bom texto sobre essa encarnação da moça…), Joan Baez fez uma canção maravilhosa, “Love Song to a Stranger-Part II”,  em que vai enumerando os casos de amor que teve ao longo da vida, e termina assim:

‘So here I sit with my basket of fruit / And two finger bowls of glass /
I finished my bottle of Germany’s best / And concluded my thoughts on the past /That love is a pain in the ass.”

Mais ou menos assim: Então me sento aqui com uma bandeja de frutas e termino minha garrafa do melhor vinho alemão e concluo meus pensamentos sobre o passado que o amor é a pain in the ass.

A pain in the ass, literalmente uma dor na bunda, é o que nós chamamos de um pé no saco.

***

Sei, sei, sei, mas… Exatamente o que eu estou querendo dizer com tudo isso?

Ahhnn… Perdão, eu não estava querendo defender tese alguma. Isto aqui é apenas um suelto, e os sueltos são exatamente isso, sueltos… Não querem dizer nada…

Agora, se fosse assim para fazer uma afirmação definitiva, eu faria duas.

Uma, tirada do Evangelho Segundo Vinicius, dirigida à moça que apareceu na minha vida em um momento em que eu estava um pouquinho distraído, 35 anos atrás:

“Encontrei em você a razão de viver e de amar em paz.”

A outra é aquela da canção do Geraldinho Azevedo:

“Quem inventou o amor tinha certamente inclinações musicais.”

10 e 11/6/2025

Um comentário para “Quem inventou o amor”

  1. Caro Sérgio, adorei o texto, algo sensível que parece ter sido puxado direto do seu âmago. Um tema perfeito para o dia dos namorados. Incrível a atenção com as informações dos mencionados. Eu tb ouço menos musica do que antes, mas não consigo ouvir baixinho. Hoje tenho uma porta acústica e ouço em um volume razoável. Prefiro acreditar que a musica encanta meus vizinhos. hehe Me recordo do comentário de um deles:-Ontem eu e Marta ficamos na varanda ouvindo sua seleção de Jazz, estava ótima! abração

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *