Anjos e demônios

Não é que a China seja uma santinha, como também não são o Japão, o resto da Ásia, a Europa, a Oceania, a África, a América Latina etc. Ninguém é santo no mundo, nem mesmo o Vaticano. Os EUA não são nem nunca foram. Mas a questão está longe de ser religiosa ou de justiça, como acha mister Trump. A questão é a “economia, estúpido” — como diria um estrategista de campanha de um presidente norte-americano tanto tempo atrás que já me esqueci quem foi.

Todo mundo cobra uma lasquinha dos produtos norte-americanos exportados — uns mais, outros menos, conforme suas necessidades. Faz parte do jogo, quanto mais não seja para atrair os fabricantes de fora para produzirem dentro do país. Os EUA cansaram de fazer isso no passado, impondo tarifas até mais pesadas que as de agora. Era para proteger a indústria nascente e estimular a entrada de investimentos produtivos. 

E por que, então, mister Trump está tão aborrecido? É porque ele acha que o mundo está trapaceando com os EUA, cobrando “horrores” em tarifas de importação, enquanto os EUA cobram “merrecas”.

Não é bem assim. Não tem trapaça. Os EUA vendem produtos de alto valor agregado a países que exportam para lá produtos de menor valor. E isso é uma boa para os EUA, que ganham muito mais vendendo menos. E assim mantiveram sua hegemonia no capitalismo ocidental por décadas. 

É o que Trump está destruindo agora, sem saber o que está fazendo. Ele não está fazendo a América grande outra vez, está acabando com ela. 

Há décadas, também, que os americanos consomem muito mais do que produzem. E justamente por isso acumulam um déficit da ordem de US$ 37 trilhões de dólares, acima de seu PIB de US$ 27 trilhões. Trump não enxerga que é por vontade e necessidade dos americanos que o país importa cada vez mais. 

Muitos outros países industrializados também têm déficits comerciais e nem por isso saem por aí dando tiros em quem produz para eles comprarem. 

É o que mister Trump anda fazendo. Está punindo quem faz e serve o banquete para os americanos comerem do bom e do melhor, a um precinho de vovô para netinho. 

Todos os países industrializados ficam ricos com o passar dos tempos. E, ao enriquecerem, o destino deles é consumir mais do que suas fábricas são capazes de produzir. É uma questão matemática. Uma fatalidade do capitalismo. A sua maior contradição. Aí precisam das fábricas dos outros e, se há poucas, mandam seus capitais para lá a fim de montar mais fábricas para atendê-los. 

Não fazem isso porque sejam bonzinhos. É que como ficaram ricos, seus cidadãos não querem mais pegar no pesado. Preferem mil vez trabalhar nos escritórios da burocracia do Estado, nas salas refrigeradas dos centros de decisão das empresas privadas, no seu próprio negócio a duras penas conquistado, etc. 

E o empresário dono da indústria vai achar onde a mão-de-obra para trabalhar nas máquinas que comprou no mês passado? Para não perder o dinheiro empatado no ativo imobilizado, o empresário vai para onde houver trabalhadores em quantidade e a um custo menor. 

Foram eles que tornaram a China o que ela é hoje, uma potência  econômica capitalista num regime comunista. A China aproveitou e fez rapidamente a lição de casa, investiu pesado em educação, inovação e modernização, e hoje ostenta o parque industrial mais moderno e produtivo do planeta. 

Mister Trump parece não ter inteligência e formação para ver as coisas de outra forma. Para ele tem sempre alguém na esquina esperando para dar-lhe uma rasteira. Ele e seu eleitorado não têm visão lateral, e mal enxergam o que está à frente do nariz. 

Ao encarecer os produtos que entram no seu país, é mister Trump quem está dando uma rasteira no compatriota desavisado que cruza sua esquina. 

E ao sofrer retaliações na mesma moeda, ele está dando um chute no traseiro dos seus compatriotas que estão ralando na indústria e na agricultura, pois os produtos americanos ficam muito mais caros e os cidadãos do país taxado vão procurar outras marcas, outras procedências. 

Sem santos, os demônios fazem a festa. Não é um jogo de ganha-ganha, mas de perdas-e-mais-perdas. Um jogo estúpido. Todos perdem e, no extremo, os vitoriosos serão os que perderem menos. A diferença entre o roto e o esfarrapado, porém, será imperceptível. 

Nelson Merlin é jornalista aposentado e descrente na inteligência de economistas e  bilionários que levaram Trump de volta ao poder.

10/4/2025 

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