Grandes jornadas, como a luta pela anistia nos tempos da ditadura militar, as Diretas Já, o “Fora Collor” e o impeachment de Dilma Roussef, se afirmaram porque, além de encher as ruas, conquistaram os corações e mentes dos brasileiros. Em outras palavras, galvanizaram a opinião pública e se tornaram uma causa nacional como parte importante de sua agenda política. Esses requisitos não estão presentes na atual campanha pela anistia aos presos por participar da intentona bolsonarista do 8 de janeiro de 2023 e que resultou numa chocante depredação do patrimônio público.
É sob essa ótica que deve ser analisado o ato realizado domingo em São Paulo, na Avenida Paulista. Se o objetivo era conquistar a opinião pública a ponto de se tornar irreversível a aprovação pelo Congresso Nacional do projeto da anistia, a manifestação não logrou êxito. Ao contrário, revelou os limites de sua capacidade de conquistar novos apoios fora do núcleo já convertido. Não que tenha sido um fiasco em termos de público, longe disso.
Não é desprezível um ato com 45 mil pessoas, segundo o Monitor do Debate Político do Cebrap, ou com 55 mil pessoas segundo o Datafolha. Quando cotejado com a raquítica manifestação contra a anistia convocada pela esquerda realizada uma semana antes, o ato do último domingo evidenciou que o bolsonarismo continua sendo a única força política com poder de mobilização. Esse é um fenômeno recente no Brasil, uma direita com base de massas.
Os números e a presença de sete governadores — quatro dos quais com pretensões presidenciais e de olho no espólio de Bolsonaro — podem levar à leitura equivocada de que o ex-presidente saiu do ato revigorado por ter dado uma demonstração de força. No frigir dos ovos, o ato apontou os limites do bolsonarismo e da própria bandeira da anistia para os golpistas. Bolsonaro prega para os seus e, como sua base é radicalizada, radicaliza no discurso, dificultando mais ainda a tramitação de sua bandeira no Congresso Nacional.
A presença dos governadores no ato da Avenida Paulista não deve ser interpretada como apoio irrestrito à anistia, mas como um gesto estratégico. O evento ofereceu visibilidade e funcionou como aproximação calculada com o eleitorado bolsonarista — ativo relevante para quem almeja protagonismo em 2026. Subir ao palanque evita o rótulo de traidor, mas envolve riscos: quanto mais presos à lógica da radicalização, menor a capacidade de dialogar com o eleitorado mais amplo, que busca uma alternativa moderada e viável.
Nesse contexto, a inelegibilidade de Bolsonaro pode ser vista, por muitos, como uma oportunidade. Sua ausência abre espaço para novas lideranças disputarem o campo conservador sem enfrentá-lo diretamente, além de reduzir a temperatura do debate e permitir pontes com o centro político.
Ao adotar a tática do intimidamento do presidente da Câmara Hugo Motta (Republicanos-PB), Bolsonaro estreita as possibilidades de ampliar seu campo de alianças no Congresso Nacional.
O grande problema da bandeira da anistia é sua rejeição pela maioria dos brasileiros. Pesquisas do Datafolha e da Quaest mostram que 56% são contra perdoar os responsáveis pelo 8 de janeiro, enquanto os favoráveis não passam de 34% a 37%. Além disso, 52% consideram justa a decisão do STF de tornar Bolsonaro réu, e o mesmo percentual defende sua prisão por tentativa de golpe.
O Congresso, em certa medida, reflete esse sentimento. Se houvesse apoio popular à anistia, ela já teria avançado. Mas a realidade é outra — agravada pelo erro estratégico de Bolsonaro ao confrontar os presidentes da Câmara e do Senado.
Sem respaldo nacional, a anistia se torna um instrumento de sobrevivência política: tenta evitar uma possível prisão e reverter a inelegibilidade para 2026.
Ao ser atacado, Motta teve um comportamento equilibrado com exata noção do momento delicado em que o país vive. Por um lado, compreende que as prioridades do país são outras – não a anistia; por outro, aponta a necessidade de se revisitar a dosimetria dos já condenados, no sentido de corrigir injustiças.
Para usar a expressão do cientista político Bolívar Lamounier, “vemos hoje uma disputa entre dois populistas sem projetos”. O Brasil não pode se resignar a uma polarização marcada pela ausência de propostas consistentes para os seus reais desafios. A bandeira da anistia, assim como outras pautas artificiais, desvia o foco do que realmente importa: crescimento econômico sustentável, educação de qualidade, fortalecimento das instituições democráticas, redução das desigualdades e conexão com o que acontece no mundo. O país precisa reencontrar sua agenda pública — aquela que nasce do interesse coletivo e que mobiliza a sociedade em torno de um projeto de nação.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 9/4/2025.