Eles gostam de chamar de Revolução o que não passou de uma quartelada militar com apoio de civis golpistas, imprensa idem e embaixada dos EUA ibidem. A quartelada tinha data para terminar, dada pelo próprio comandante da empreitada, um general de nome Humberto de Alencar Castello Branco, chefe do Estado-Maior do presidente que depôs, João Belchior Marques Goulart.
A data era a posse do novo presidente da República a ser eleito no fim de 1965 — de acordo com a Constituição de 1946 — e, se tivesse sorte, ser empossado em março de 1966. O Ato institucional número 1 não tinha número, era para ser primeiro e último.
Aconteceu que os milicos do andar de baixo gostaram da festa. À frente deles estava outro general, de nome Artur da Costa e Silva, ele também um articulador do golpe e louco para ser o sucessor de Castello, coisa que jamais conseguiria se houvesse a eleição de 65.
Com o Costa nos seus costados, Castello mandou mais três Atos Institucionais — um no fim de 65, acabando com a eleição direta para presidente, outro no ano seguinte, acabando com a eleição direta para governadores e prefeitos das capitais e grandes cidades, e o último para promulgar a Constituição de 1967. Ao cancelar as eleições de 65, rasgou a fantasia e autointitulou-se presidente até 15 de março de 1967.
E, para perpetuar a ditadura, criou o SNI, a Lei de Segurança Nacional e, pasmem todos os golpistas e simpatizantes, meteu a mão na lei do salário mínimo para criar o maior arrocho salarial do mundo — o aumento dos salários tinha que ser MENOR que o da inflação —, e tascando ainda no lombo de todos o FGTS, permitindo aos empresários demitir trabalhadores quando bem entendessem. Para completar a obra, sua equipe econômica, Bulhões e Campos à frente, criou um mecanismo que fazia uma espécie de correção negativa com juros pífios no Fundo que dura até hoje. Que beleza!
Claro que a inflação desacelerou (não muito, foi de 25% para 19% e Costa e Medici, seu sucessor, puderam curtir as bases do “milagre econômico” a juro internacional quase zero, passado a Geisel em 1983 — mas já com inflação e dívida externa galopantes. E, como efeito visível nos grandes centros urbanos, Castello e seu arrocho salarial legaram para a posteridade a figura dos “trombadinhas” — ondas de crianças que não tinham o que comer em casa e perambulavam pelas ruas atrás de comida e trocados para sobreviver, batendo carteiras e sendo mortas pela polícia, da Candelária ao resto do país.
Voltando a 67, em 15 de março Costa foi nomeado presidente da República pelo “Conselho da Revolução”.
Não ficava bem chamar o tal conselho de Conselho do Golpe ou Conselho da Quartelada, e daí o título de Conselho da Revolução ou Conselho Revolucionário — nome que foi dado em seguida ao golpe pelo notável Chiquinho Ciência.
Esse era o apelido do causídico Francisco Campos, autor solitário de cabo a rabo da Constituição de 1937, encomendada por Getúlio Vargas para instalar o Estado Novo, já que o anterior, de 1930, havia caído de podre após o levante de 32 em São Paulo, a intentona comunista de 35 em Copacabana (a de Prestes) e a intentona integralista nazifascista de 37 (a de Plínio Salgado, cujos soldados chegaram a invadir o Palácio do Catete a tiros, coisa que os comunistas ficaram devendo dois anos antes).
Chico Ciência foi quem deu a sustentação jurídica ao golpe de Primeiro de Abril de 1964 e ao Ato Institucional que não tinha número, escrevendo de próprio punho que a Revolução continha em si a sua própria explicação, por ser constituinte de si mesma, equivalente portanto a uma Constituinte novinha em folha.
Daí aprendi para o resto da vida que advogados são capazes de tudo, e se não há lei que os suporte em alguma refrega ou questão judicial é porque a lei — ora, a lei… — é falha!
Até onde vão minhas reminiscências, o Costa editou somente um Ato Institucional, o AI-5 (precisava mais?), que tantas saudades deixou entre o velho público golpista, ressuscitado na eleição de 2018. Esse não foi escrito pelo Chico Ciência, mas por um ser de menor expressão, com um décimo dos conhecimentos jurídicos, apelidado Gaminha, ministro da Justiça do Costa (e também de Castello, acumulando o Ministério da Educação), que atendia pelo nome de Luís Antonio da Gama e Silva, alçado ao cargo por sua destacada atuação na repressão a professores e estudantes de oposição (eu inclusive) no período em que foi duas vezes reitor da USP.
Costa sentiu que Gama tinha ido longe demais para reprimir as supostas consequências de um rápido discurso-desabafo proferido no chamado pinga-fogo da Câmara Federal – a hora da tribuna aberta, para pro9nunciamentos rápidos, sem maior importância. O deputado Márcio Moreira Alves pedia às moças em sua fala para não aceitarem dançar com cadetes na festa de formatura daquele fim de ano de 1968.
Falou e disse, a ditadura ficou p. da vida, pediu sua cassação ao Congresso e perdeu por poucos votos. Foi dramático. Em represália, fechou o Congresso e encomendou o AI-5.
Ante a peça de Gaminha, Costa estava cheio de razão. Mesmo sendo ele um expoente da linha-dura militar, pareceu-lhe ser um tiro de canhão para matar uma mosca na janela. Ao que sei, havia uma versão ainda pior e Costa resolveu assinar logo aquela mesma.
Costa, como Castello em relação ao golpe, também pensava que seu Ato-5 ia vigorar por pouco tempo e o revogaria em breve. Mas havia uma linha-dura ainda mais dura nos porões da ditadura. A pressão de baixo para cima era intensa para endurecer o regime de uma vez por todas. Gaminha e eles queriam fechar em definitivo o Congresso, as Assembléias Legislativas e as Câmaras de Vereadores e acabar para sempre com as eleições, mesmo que indiretas.
Costa não aguentou. Um derrame cerebral o tirou do ar e do cargo em agosto de 1969 e o levou à morte em dezembro, um ano e quatro dias depois de assinar o AI-5 — que só foi revogado também num dia 13 de dezembro, mas dez anos depois, nos estrebuchos do governo Geisel.
Teve um fim tão repentino quanto o de Castello, após despedir-se do cargo em 1967, voando num avião do Exército quando se aproximava do aeroporto de Fortaleza, não lembro bem se após ou para uma visita a sua amiga e escritora Rachel de Queiroz. Inexplicavelmente, um avião da FAB decolou do mesmo aeroporto na mesma hora, deu uma volta e atingiu o de Castello. O da FAB retornou sem um pedaço da asa. O de Castello estatelou-se no chão. O caso nunca teve explicação, mas diz-se que foi o avião de Castello que se meteu na rota do outro.
Bem, depois de Costa e Castello continuaram chamando de Revolução a quartelada de 64.
Tanto quanto sei, Revolução ocorre quando há mudanças profundas na organização econômica e social, de forma pacífica ou não, para o estabelecimento de uma nova ordem, com novos fundamentos e mais justa que a anterior, da qual se diferencia com propostas de transformação das estruturas econômicas, de justiça social e de respeito aos direitos humanos, para dizer o mínimo.
Não são muitas na História. A de 64 no Brasil não preenche nenhum dos requisitos básicos: o sistema econômico continuou o de sempre, a desigualdade aumentou, a inflação disparou, a dívida externa escalou e os direitos humanos retroagiram ao estado de selvageria do Brasil colonial.
Nada a comemorar. Apenas a lembrar para que sirva de lição.
Nelson Merlin é jornalista aposentado e um tanto quanto historiador nas horas vagas. Para ler como sequência do anterior — Xô, meu!
2/4/2024