O cara sentado a uns dois metros de nós cantava junto com o som do bar – mas cantava aos berros, a plenos pulmões saudáveis de quem nunca fumou careta na vida, os pulmões saudáveis da minha filha que, quando começou a berrar naquele velho barco viking do PlayCenter, fez o camarada sentado atrás de mim ficar dizendo, seguidas vezes: – “Desliga ela, tio! Desliga ela!”
Interessante: ninguém no bar parecia estar a fim de desligar o cara.
É um bar pequeno, bem pequeno, e bem interessante. Mary gostou dele só ao vê-lo na internet, numa pesquisa sobre o que haveria perto ali do apartamento no Tortuga, final da Praia da Enseada, no Guarujá.
O bar fica na Estrada de Pernambuco, na segunda quadra após a praia e a Miguel Estefno; Ocupa um espaço exíguo no segundo andar de um predinho, como se fosse um vagão de trem; tem uma mesa maior em uma extremidade, outra mesa maior na outra extremidade, onde nós estávamos, e, entre elas, apenas três mesas pequenas, cada uma para duas pessoas. Ao fundo fica um belo balcão – mas não há espaço para neguinho sentar diante do balcão. Na calçada, há outras três ou quatro mesinhas.
Naquela noite – a de uma quinta-feira de novembro, absolutamente fora de temporada, portanto –, creio que, depois que nos sentamos, todas as mesas estavam ocupadas.
O cara que cantava aos berros junto com o som do bar estava sentado na mesinha do meio, de frente para nós. A moça diante dele – namorada, mulher, a gente não sabia, é claro – estava de costas para nós.
O bar se chama Johnny Daniels – assim, uma união Escócia-Tennesse. Poderia, claro, ser Jack Walker. E é, escancaradamente, um bar roqueiro. Tem assim um mood roqueiro.
Tem um grande monitor de TV justamente na parede lateral voltada para a mesa em que estávamos. Atrás do alegre cara que cantava junto com a banda. O volume da TV não era alto, de forma alguma. Era bastante civilizado – até porque o bar é um lugar roqueiro mas não para a garotada, e sim mais para roqueiros de meia-idade. Como, aliás, era o caso do personagem desta historinha, o cara alegre que não parava de cantar junto com a banda do som do bar.
A banda cantava rock brasileiro dos anos 80 e início dos 90. Legião, Barão, Cazuza solo, Paralamas, Capital Inicial, basicamente – e mais um tanto de Lulu Santos, Titãs, Ultraje.
Claro que eu não conhecia a banda que os caras do bar tinham botado no telão – mas nada escapa ao Tio Google, e então fomos apresentados, Mary e eu, ao Rock Beats e sua vocalista Daniela Firme, carioca da classe 1983 criada desde os 4 anos, portanto desde 1987, lá mesmo em Brasília, a terra da Legião, do Paralamas, do Capital Inicial.
E de repente ele mesmo, o cara alegre que não parava de cantar junto com Daniela Firme, se apresentou diante de nós:
– “Sou Adriano. Muito prazer”, disse, estendendo a mão para mim e prosseguindo de imediato: – “Adoro ver gente feliz”.
Falou mais umas duas frases, voltou para sua mesa, sentou-se, e dali a meio segundo estava cantando junto com Daniele Firme, só que muito mais alto do que ela.
***
Mary e eu ficamos trocando figurinha, fazendo contas.
Diacho: quantos anos deve ter o Adriano, o roqueiro feliz?
Tudo aquilo ali – me vi asseverando, como se fosse um expert, uma autoridade em rock brazuca– é anos 80 puro, início dos anos 80. Mary, que morou em Brasília ao longo de quatro anos, cobriu da Constituinte (maravilha) à Casa da Dinda (inferno!), na segunda metade dos 80, chutou alguns anos. Eu, que passei poucas vezes por Brasília – mas o suficiente para conhecer lá essa moça que me apresentou o amor em paz, em 1989, o ano da primeira eleição direta pós-Ditadura – tinha as referências de quem era pai de jovem que cresceu naquela década, e foi com ela a shows daquelas bandas. E tínhamos o Tio Google…
… e então, com base no que Mary achava da cara dele, chutei que o Adriano deveria ter uns 54 anos. Nascido em 1970, entrou na adolescência ouvindo exatamente aquelas canções que ele agora berrava a plenos pulmões.
E fomos ficando ali, tomando mais uma cervejinha e conversando e, quando pedi a conta…
– “Ela já foi paga”, informou o garçom, rapaz simpático – aliás, simpático como todas as pessoas de todos os bares e restaurantes em que estivemos naqueles cinco dias de Guarujá.
Mary e eu nos entreolhamos…
Depois que terminamos nossas cervejas, levantamos e fomos lá agradecer ao Adriano. E perguntei quantos anos ele tem. Diante da resposta – 57 –, contei das nossos cálculos, contei que havia chutado que ele deveria ter uns 54, porque só quem tinha os neurônios bem jovens, fresquinhos, nos anos 80, poderia saber de cor todas aquelas músicas.
Adriano sorria de orelha a orelha. Me elogiou, disse que eu parecia ser muito inteligente, por fazer aqueles cálculos. E perguntou: – “Você ama o rock? Você é roqueiro?”
– “Ahnnn… Não é bem a nossa praia…”
Não deu tempo de explicar que sou mais MPB e folk, mas também também gosto de pop, e de rock bom. Ele pareceu surpreso, chocado com minha resposta – mas não perdeu o humor. Nos despedimos dele e da simpaticíssima mulher dele entre sorrisos. Antes que a gente começasse a descer as escadas, ele disse: – “Adriano, Tatuapé! Vocês de onde são?” Respondi: – “Perdizes!” Ele: – “Juntinho! Pertinho!”
Bem, no mapa, não é juntinho, pertinho, não. Claro: Tatuapé é Zona Leste, Perdizes é Zona Oeste. Mas na verdade é juntinho, pertinho, sim. É São Paulo, meu! Túmulo do samba mas possível novo quilombo de zumbi. São Paulo que é como o mundo todo. São Paulo, cidade cinza, lugar de gente séria, triste, mal-humorada..,
Saúde, Adriano roqueiro alegre!
Novembro de 2024
marciabotelho1810@gmail.com