Quando Lula montou seu ministério e colocou a doutora Nísia Trindade à frente da Saúde, ofereceu uma espécie de vitrine do novo governo. Nísia, com um currículo invejável e largos serviços prestados à saúde pública brasileira, era uma espécie de unanimidade
Foi a clara sinalização de que a ciência voltaria a ser valorizada e a saúde voltaria a ser prioridade do governo. Representava a certeza de que ficariam para trás os tempos de terra arrasada de Jair Bolsonaro e seus Pazuellos, quando a Covid ceifou a vida de 700 mil brasileiros.
Depois de pouco mais de um ano, Nísia está sob fogo cerrado. De um lado, o Centrão direcionou suas baterias contra a ministra de olho gordo no robusto orçamento da pasta, de R$ 231 bilhões. Imaginem o impacto nas eleições municipais se o Centrão conseguir usar parte dessa verba para irrigar os municípios nos quais tem interesses políticos e eleitorais. Nísia tem sido um obstáculo à voracidade da coligação de interesses não republicanos, ávida em colocar as mãos no butim da Saúde.
Do outro lado vem o fogo amigo de onde ela menos esperava, o Partido dos Trabalhadores, interessado em avançar na máquina do Ministério da Saúde. Especialmente no Rio de Janeiro, onde o PT dá as cartas nos seis hospitais federais existentes no Estado. Historicamente esses hospitais foram alvo de grupos onde o crime organizado, empresários inescrupulosos e políticos locais atuavam juntos, como um consórcio. Os resultados desse conluio foram administrações calamitosas, superfaturamentos na compra de insumos médico hospitalar, licitações fraudulentas e descaso com a população.
A sanha do condomínio mafioso levou à situação calamitosa, cujas vísceras foram expostas em toda sua dramaticidade em recente programa da Rede Globo.
A reportagem teve ampla repercussão. Interessados em desestabilizar a ministra viram na crise dos hospitais federais do Rio uma oportunidade para provocar a sua demissão. No curto prazo, para enfraquecê-la, levando-a a aderir ao liberou geral das emendas parlamentares reclamado pelo Centrão.
A crise desses hospitais não foi criada pela ministra da Saúde. É uma herança maldita que vem de longe e não foi enfrentada por vários governos, inclusive os do PT. Agravou-se profundamente na gestão passada, tanto pelo descalabro da administração Bolsonaro quanto pelo crescimento de novos personagens para dar as cartas nos hospitais federais do Rio.
Não se pode acusar Nísia de omissão no enfrentamento dessa crise. Logo após a sua posse, o Ministério da Saúde fez um relatório dissecando o estado calamitoso dos seis hospitais. Andares inteiros estavam fechados, mais de 200 leitos desativados, equipamentos deteriorados, obras incompletas. O Ministério fez mais, abriu edital para a contratação de 500 profissionais, criou um comitê para discutir a reformulação dos hospitais.
Teve ainda a coragem para contrariar interesses ao editar uma portaria centralizando as compras de insumos médico-hospitalares no Departamento de Gestão Hospitalar (DGH) do Ministério da Saúde. Dessa maneira, fechavam-se os dutos de licitações fraudulentas e de superfaturamento, práticas que se beneficiavam da pulverização das compras. Sem dúvida, essa foi uma decisão fundamental na tentativa de estancar o problema, evitando que os recursos públicos saíssem pelos ralos da corrupção e da ineficiência.
A ministra comprou briga com gente grande. Políticos do Rio de Janeiro de vários partidos começaram a reclamar por causa da centralização. Quem mais chiou foi o Partido dos Trabalhadores, por ser quem dá as cartas nos hospitais federais do Rio.
Nísia passou a ser acusada de ser centralizadora e de não ter jogo de cintura, crítica usual do Centrão, que condena a ministra por ela só se dispor a liberar emendas parlamentares com o devido embasamento técnico.
Por falta de sorte de Nísia, a matéria do Fantástico da TV Globo sobre o desperdício, as suspeitas de irregularidades e as péssimas condições foi ao ar em um momento em que a popularidade de Lula está em baixa. A Saúde é o segundo tema que mais incide sobre o humor dos brasileiros, como as últimas pesquisas demonstram. Fica atrás apenas da Segurança. Lula diz não se preocupar com pesquisas. Acredite se quiser.
A ministra entrou, então, no modo de fritura a fogo alto, com uma mãozinha do próprio Lula. Na reunião ministerial de segunda-feira, 18 de março, foi admoestada publicamente pelo presidente, a ponto de Nísia fazer um desabafo emotivo. Lula diz que mantém a confiança nela, mas não sai a campo para defendê-la dos ataques especulativos das forças interessadas em sua degola.
Enfraquecida, teve de promover mudanças em sua equipe. Demitiu o diretor do DGH, Alexandre Telles, autor do relatório apontando o descalabro, em cujas mãos estavam centralizadas as compras dos seis hospitais federais do Rio. Não por coincidência, Telles foi substituído pela ex-deputada do PT, Cida Costa. É uma péssima sinalização, uma concessão que a ministra teve de fazer para se manter no cargo. Até quando, ninguém sabe.
A fritura de Nísia não é uma resposta à pandemia da dengue ou ao aumento das mortes de ianomâmis. Seu “cai não cai” não se dá por esses motivos. A ministra pode cair não por seus erros, mas por seus acertos.
Uma pena ver uma cientista de sua qualidade ser levada à frigideira sob o olhar contemplativo de quem a escolheu para o cargo em virtude do seu perfil técnico e pelo papel que desempenhou na pandemia da Covid.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 27/3/2024.