É ironia do destino ou fenômeno de causa-e-efeito? A grande maioria das cidades mais atingidas pelas tempestades catastróficas do ano passado e deste ano no Rio Grande do Sul votou em massa nos negacionistas, desmatadores, terraplanistas, golpistas e quejandos nas eleições de 2018 e 2022.
Porto Alegre foi a única grande cidade do estado em que os negacionistas foram derrotados. A capital dos gaúchos fica no delta dos rios que inundaram as cidades altas do estado. O sistema de proteção contra cheias, formado por diques de concreto e comportas de aço ao longo de quilômetros, na capital e região metropolitana, não deu conta.
Porto Alegre também foi vítima dos negacionistas. A prefeitura local oscila entre eles e os ambientalistas, muito mais para aqueles do que para estes, em busca de apoio na Câmara de Vereadores. Não por outro motivo, investiu zero reais em prevenção de enchentes na cidade durante 2023. Em 2021 já tinha reduzido drasticamente esses investimentos e em 2022 cortou simplesmente pela metade o que já era quase nada. Em 2023 chegou à “perfeição”: o Zero absoluto.
O prefeito atual, do MDB, alega que outras verbas foram destinadas à redução de riscos em outras secretarias. Alega mas não convence.
Desde que o porto da cidade foi praticamente desativado décadas atrás, restando somente o trecho ao longo dos bairros de Navegantes e Humaitá, as dragas desapareceram como por encanto do Guaíba. Décadas de assoreamento se seguiram e nada foi feito para restabelecer a calha e o leito do estuário. Isto ajudaria a armazenar água de modo natural nas estações chuvosas.
Não havia mais navios grandes atracando. Somente embarcações de pequeno porte. Para que continuar? E assim o leito do estuário, lago ou rio, como queiram, foi se elevando no decorrer dos anos de incúria e reduzindo sua capacidade de receber e escoar a vazão de nada menos que cinco bacias hidrográficas do Centro e do Norte do estado.
O rio encheu outras vezes, não tanto como agora, mas passou do limite de alerta (2,5 metros). Só não chegou ao limite de inundação (3 metros) porque São Pedro ajudou e as chuvas pararam. Eram avisos importantes. Todos ignorados pouco depois que as águas recuaram.
O eleitorado gaúcho referendou em outras eleições os negacionistas, travestidos discretamente de defensores do progresso e da liberdade de ação — não só nas duas últimas eleições. Mas nestas, os bolsonaristas vestiram sem pudor a camiseta do negacionismo, do desmatamento e do desmonte da legislação ambiental e obtiveram uma enxurrada de votos nas urnas.
Que sirva de lição a enxurrada que agora veio das nuvens.
Nelson Merlin é jornalista aposentado e estupefato.
9/5/2024.