A volta da normalidade

É visível o esforço da cadeia de comando para despolitizar as Forças Armadas e trazê-las para o leito natural de suas obrigações constitucionais. Nesse escopo enquadra-se a sinalização de que os militares não se opõem à reinstalação da Comissão dos Mortos e Desaparecidos no período da ditadura militar.

Criada por Fernando Henrique Cardoso, a Comissão atendeu ao pleito dos familiares das vítimas, como uma medida de pacificação do país. Mas ao final do governo Bolsonaro ela foi extinta por motivos político-ideológicos. Desde os tempos em que era deputado, o ex-presidente sempre foi um defensor da ditadura militar e tinha como heróis torturadores como Brilhante Ustra, a quem homenageou diversas vezes.

A extinção da instância de apuração dos crimes cometidos pela ditadura soou como música para os ouvidos da extrema direita, mas como ofensa aos familiares, que têm o direito de saber o que aconteceu com seus desaparecidos, assim como o Brasil tem o direito ao esclarecimento de uma página obscura e infeliz de nossa história. A Comissão não tinha propósito revanchista e respeitava a Lei da Anistia. Foi um avanço civilizatório e um passo importante para a reconciliação entre os brasileiros. Esses eram os objetivos do então presidente FHC.

Sua reinstalação foi compromisso de campanha de Lula. Mas, com os episódios do 8 de janeiro, a promessa ficou em banho maria. A cautela inicial do presidente estava em sintonia com a estratégia de apaziguamento e pacificação das Forças Armadas. Isso se justificava pela extensão da infiltração bolsonarista na caserna.

O ambiente mudou. Já não é o mesmo do início do governo. O atual comando demonstra seu compromisso com a descontaminação para que as Forças Armadas se dediquem às suas funções institucionais. A Comissão já não representa qualquer fator de instabilidade ou de possível contencioso com os militares. Assim, nada justifica a sua postergação. Quando em excesso, a cautela pode representar uma demonstração de medo e de fraqueza. Tanto mais que os ministérios da Justiça e dos Direitos Humanos já se pronunciaram sobre a oportunidade de sua reinstalação. Os militares não tem nada a se opor, só falta a decisão de Lula.

A atual postura dos militares em relação à Comissão não é um fato isolado. Está em sintonia com a nova política para as redes sociais do Exército, definidas por seu comandante, general Thomás Paiva. A Força excluirá de seus canais oficiais comentários com mensagens de ódio, discriminação, racismo, incitação à violência ou opiniões com conteúdo ideológico e partidário.

As redes sociais foram um poderoso instrumento para a politização dos quarteis. Basta lembrar o célebre tuite do então comandante do Exército, general Eduardo Villas Boas, quando do julgamento do habeas corpus de Lula no STF. Para se livrar do risco da politização corrosiva da disciplina e da hierarquia, o Exército regula agora suas redes sociais. O objetivo de seus canais oficiais passa a ser informar a sociedade sobre a atuação institucional da Corporação.

Sinal dos novos tempos. Quando o Supremo definiu, por unanimidade, que a Constituição não prevê “poder moderador” ou intervenção militar, o general Thomás Paiva manifestou sua concordância com a decisão da Corte. Ficou desautorizada, assim, a leitura enviesada do artigo 142 da Constituição.

Quando o comandante declarou que o “Exército não é poder de nada”, estava reafirmando o primado do poder civil estabelecido pela Constituição. É a ele que as Forças Armadas se subordinam. Pode parecer que o general Thomás estava dizendo uma obviedade, mas a sua reafirmação foi extremamente importante para dissipar qualquer dúvida quanto ao papel institucional das três armas.

O Brasil fica melhor com as Forças Armadas retornando à normalidade. Vivemos o maior período de estabilidade democrática de nossa história republicana porque desde a redemocratização do país, em 1985, se dedicaram, exclusivamente, às suas funções constitucionais. Convenhamos, não é pouco. São praticamente 40 anos sem golpe de estado ou quartelada, apesar de Bolsonaro ter se empenhado para atrair os militares para uma aventura.

Neste período de normalidade democrática as Forças Armadas granjearam a admiração dos brasileiros, transformando-se numa das instituições mais respeitadas do país. Essa imagem foi arranhada e quase ficou comprometida pela politização infiltrada em suas fileiras.

A postura da nova cadeia de comando de reforçar a imagem das Forças Armadas por meio de sua dedicação às suas missões constitucionais deve ser valorizada. Principalmente porque recém saímos de um episódio traumático, o ataque aos três poderes de 8 de janeiro de 2023.

Mas não só por isso.

O Exército, a Aeronáutica e a Marinha são aquelas armas que se fazem presentes como a mão amiga estendida em momentos de grandes adversidades. Os gaúchos sabem muito bem o quanto as Forças Armadas estão ao seu lado, salvando vidas, na tragédia que se abateu sobre o Rio Grande do Sul.

Que elas continuem assim.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 8/5/2024; 

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