As apostas esportivas online – as chamadas bets – são o novo elefante na sala. Estão aí há seis anos, corroendo, como cupim, o tecido social brasileiro. Geram graves problemas sociais, econômicos, de segurança e de saúde pública, mas sua ação deletéria tem sido solenemente ignorada pelo Congresso Nacional, pelo governo Lula e pela própria sociedade. Ao contrário, a propaganda vende a ilusão de que as apostas online são uma atividade divertida, saudável e que traz riqueza.
O problema é que falta regulação para as bets e só agora se desperta para o tamanho do estrago. As autoridades do governo prometem endurecer as regras. Não é a primeira vez em que o governo Lula reage de forma tardia em momentos graves. O mesmo aconteceu na crise da dengue e das queimadas.
Agora o ministro da Fazenda anuncia o fechamento de até 600 sites de apostas, em situação irregular. A pergunta que fica é: como foi possível tais sites atuarem livres, leves e soltos por tanto tempo?
A epidemia das bets é o grande tema do momento. Adquiriu visibilidade a partir de dois fatos de grande impacto nos meios de comunicação e na opinião pública. Graças a um levantamento do Banco Central descobriu-se que, só em agosto, 20% dos recursos repassados pelo Bolsa Família – R$3 bilhões de reais – foram usados por 5 milhões de beneficiários do programa em apostas on line. Deu-se uma transferência às avessas. Dos mais pobres para os donos das empresas de apostas esportivas.
A vitrine do governo Lula– o Bolsa Família – foi afetada pela revelação do Banco Central. O desvirtuamento do objetivo do programa, de mitigar a vulnerabilidade das camadas em situação de miserabilidade, está gerando novas chagas sociais.
O segundo episódio foi a prisão e o indiciamento do cantor Gustavo Lima, suspeito de ser o sócio controlador oculto da empresa Vai de Bet. A denúncia surgiu a partir de uma investigação da polícia de Pernambuco, que tem como alvo 53 empresários, bicheiros. Os investigados são suspeitos, entre outros crimes, de lavagem de dinheiro.
Ora, se uma empresa de aposta regular é usada para lavar dinheiro do crime organizado, imaginem o tamanho do crime cometido pelas apostadoras que operam na ilegalidade e sem o menor controle. Levanta-se, assim, o véu que encobre a suspeita de que as bets podem estar sendo usadas pelo crime organizado como grandes lavanderias.
Em seis anos as empresas de apostas tiveram um crescimento exponencial, exercendo fascínio particularmente em dois segmentos sociais: as pessoas que vivem em condições de vulnerabilidade social e os jovens. É fácil entender por que estes dois setores se tornaram prisioneiros das apostas on line.
O apelo do enriquecimento fácil encontra terreno fértil entre aqueles que vivem em condição de extrema pobreza. Até porque a eles é vendida a ilusão de que é possível mudar de vida de modo fácil e com apenas um golpe de sorte. Não se trata aqui de se ter uma visão preconceituosa com os beneficiários do Bolsa-Família que caíram nas malhas das bets. Mas de entendê-los como vítimas de uma questão de saúde pública que aprofunda a sua miserabilidade, agrava sua vulnerabilidade e contribui para a desestruturação familiar.
Outra grande vítima da nova tragédia nacional são as crianças e adolescentes, atraídas pela normalização das apostas esportivas e de jogos como o do Tigrinho, como atividade inofensiva, divertida e sociável. São vários os exemplos de transtornos mentais provocados pelo vício da aposta em adolescentes, exatamente porque nessa fase de sua vida áreas importantes do cérebro relacionadas ao controle do impulso e da regulação emocional ainda estão em fase de desenvolvimento.
Ao tornarem-se prisioneiros do “transtorno do jogo”, isso afeta o seu desempenho escolar, sua convivência social e o ambiente familiar no qual convivem. Há exemplos no Brasil de jovens que recorrem a agiotas para alimentar o vício. Em alguns casos gerando sérios problemas de segurança para sua família.
No plano econômico e social as consequências também são avassaladoras. Segundo a Confederação Nacional do Comércio, parte considerável da renda disponível dos brasileiros foi deslocada para as apostas no último ano. O país deixa de investir na produção, no comércio, nos serviços para deslocar parte da renda nacional para uma atividade parasitária e de geração de empregos baixíssima.
É previsível ainda uma explosão da inadimplência pelo comprometimento da renda das pessoas com apostas esportivas Segundo os cálculos da entidade patronal do comércio, só no primeiro semestre do ano 1,3 milhão de pessoas tornaram-se inadimplentes por causa das apostas on line. O setor do comércio estima uma perda no seu faturamento da ordem de R$ 117 bilhões.
A epidemia destas apostas não é um fenômeno exclusivamente brasileiro. Diversos países enfrentam o mesmo problema e nações como a França e Austrália adotaram regulação forte. Já passou da hora do país adotar uma regulação dura com restrições à publicidade (como acontece à décadas em relação ao tabaco e ao álcool), altos tributos e fiscalização implacável.
O Brasil tem uma experiência exitosa que pode servir de referência para o enfrentamento da pandemia das bets. No final do século passado, adotou-se uma rigorosa regulação, inclusive na propaganda, em relação aos cigarros, advertindo para sua nocividade à saúde. Frutos positivos foram colhidos de 1997 até 2020: o número global de fumantes caiu 27% entre os homens e 38% entre as mulheres.
Passa da hora de trilharmos o mesmo caminho em relação à nova tragédia nacional.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 2/10/2024.