“A impunidade ganha um nome”

José Antonio Dias Toffoli não teve a alegria de ver seu nome entre os aprovados em nenhum dos dois concursos de ingresso na magistratura do Estado de São Paulo a que se submeteu – mas fez por merecer um título muito mais difícil, o de ter seu nome transformado em nova palavra do idioma.

Os casos são pouquíssimos, de se contar nos dedos das mãos. Assim, sem uma pesquisa longa, detida, me lembro de apenas três pessoas: King Camp Gillette (1835-1932), Humphrey Bogart (1899-1957) e Paulo Salim Maluf (1931-vivinho da silva telles).

King Camp Gillette, obviamente, foi o cara que inventou a lâmina de barbear que passou a ser produzida pela empresa que ele mesmo criou em 1902, The Gillette Company – uma danada de uma lâmina de barbear tão boa que passou a designar todas as lâminas de barbear, de maneira ampla, geral e irrestrita.

Está lá no Aurélio: “Gilete (é). [Do antr. Gillette.] S. f. 1. Nome registrado de determinada lâmina de barbear. 2. P. ext. Qualquer lâmina desse tipo (…).”

Não sei o doutíssimo Caldas Aulete, mas o Aurélio traz até mesmo o significado de gilete na gíria brasileira. Está lá: “Bras., chulo, Indivíduo sexualmente passivo e ativo”.

Claro: que corta dos dois lados. Era assim que se dizia, quando aprendi, na adolescência, essa acepção brasileirissimamente chula do termo. Não sei se hoje em dia, nos tempos do politicamente correto e do LGBTQIAPN+, o termo é maldito, porco-chauvinista, ou se terá passado por um trabalho de ressignificação, como passaram, ao menos para uma parte dos ativistas do LGBTQIAPN+, termos como queer, sapatão e sandalinha

Não creio que o Webster Dictionary registre o verbo “to bogart”. Nem vou consultar minha edição fantástica, em três grandes volumes, do Webster, porque ela é antiga, do tempo em que eu era jovem. No Dictionary of English Language and Culture da Longman, há o verbete “Bogart”, para o ator – mas não há menção ao verbo “to bogart”, usado no título de uma das canções da trilha sonora de Sem Destino/Easy Rider, o antológico, icônico filme sobre a contracultura escrito e interpretado pela dupla Dennis Hopper-Peter Fonda.

A música do grupo The Fraternity of Man se chama “Don’t Bogart Me”, e começa assim: “Don’t bogart that joint, my friend / Pass it over to me. / Don’t bogart that joint, my friend / Pass it over to me. / Roll another one / Just like the other one”.

O excelente, fundamental site Letras (https://www.letras.mus.br/) traduz assim: “Não monopolize esse baseado, meu amigo / Passe isso aqui para mim / Não monopolize esse baseado, meu amigo / Passe isso aqui para mim. / Enrole outro / Exatamente como o anterior”.

Nos seus filmes, Bogey fumava sem parar – tá certo que os caretas, aqueles que só dão câncer e nenhum barato. Mas fumava sem parar, dava longos tragos e não soltava o cigarro de jeito nenhum – e então usar o nome dele como verbo, como sinônimo de monopolizar, foi um maravilhoso achado.

Um maravilhoso achado – mas não há dúvida de que de uso restrito, gíria de maconheiros. Nem de longe tem a abrangência de gilete. Nem sequer de malufar.

Mary e eu checamos: o verbo “malufar” não está no Aurélio – pelo menos na edição que tenho aqui ao meu lado, ao alcance da minha mão. Nem figura no mais novo – e excelente – Dicionário Unesp de Português Contemporâneo. Mas seu uso é amplo, corriqueiro. Eu não malufo, mas, ah, ele malufa, eles malufam, e muito. Lá no Congresso Nacional – mas não só lá – infelizmente, eles malufaram, ainda malufam e, com toda certeza, ainda malufarão muito.

Está no Dicionário informal na internet (https://www.dicionarioinformal.com.br/). “Malufar. O supra-sumo da Lei de Gérson aplicado à gestão pública. Neologismo que significa esperteza, no pior sentido, a malandragem mais descarada, a roubalheira associada ao empreendedorismo do político. É o salvo-conduto para a safadeza.”

Traz um exemplo: “Lalau malufou os cofres públicos.”

E indica sinônimos: “roubar, safadeza, malandragem, escangalhar,  dar errado, encobrir, disfarçar, negar, fraudar”.

E então chegamos a Dias Toffoli, o cara que não conseguiu passar no concurso de ingresso na magistratura de São Paulo. Jamais foi sequer juiz substituto em Presidente Prudente, Rosana, Aguaí ou qualquer cidade do interior pequena e/ou distante da Capital, mas foi alçado por Lula diretamente ao Supremo Tribunal Federal.

Dele não se poderia dizer que tinha propriamente “notável saber jurídico”, conforme exigido pela Constituição da República Federativa do Brasil – mas, diacho, o sujeito era bom companheiro. Havia prestado serviços ao Partido dos Trabalhadores durante anos e anos. Foi consultor jurídico na CUT, Central Única dos Trabalhadores de 1993 a 1994, e advogado do PT nas campanhas presidenciais de Lula em 1998, 2002 e 2006 – entre vários outros cargos ligados ao partido.

Como será que os dicionários registrarão o novo verbo surgido a partir do antropônimo Toffoli?

Toffolizar. Verbo intransitivo e também transitivo direto. Inocentar corruptos; autorizar todo e qualquer tipo de corrupção; abençoar tenebrosas transações contra o patrimônio público. P. ext: liberar geral.

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Quis tratar com bom-humor esse tema sério, pesado, por causa do ótimo editorial que O Estado de S. Paulo publicou neste sábado, 14/9. Idéia um tanto (ou muito) besta, tratar coisa séria tentando fazer graça.

Aí vai o editorial. Este, sim, tem – como dizia a canção cantada por Isabel Parra – “sentido, entendimiento y razón”.

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A impunidade ganha um nome

Um ano após anular as provas obtidas no acordo de leniência da Odebrecht, Dias Toffoli batiza uma corrida de delatores em busca dos mesmos benefícios processuais dados a Lula da Silva

Editorial, O Estado de S. Paulo, 14/9/2024

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Dias Toffoli deve estar orgulhoso de seu revisionismo histórico da Operação Lava Jato, sua magnum opus como juiz. Um ano depois de anular todas as provas obtidas por meio do acordo de leniência da Odebrecht, hoje Novonor, seu nome batiza um movimento de dezenas de delatores, alguns criminosos condenados, que têm acorrido aos tribunais para obter os mesmos benefícios processuais concedidos pelo ministro ao presidente Lula da Silva, autor do pedido de anulação. É o “Efeito Toffoli”, algo que, sem qualquer prejuízo semântico, também pode ser chamado de festim da impunidade.

 

Em 6 de setembro de 2023, vale lembrar, Toffoli usou um despacho monocrático em uma Reclamação (RCL 43007) interposta pela defesa de Lula, na véspera do feriadão da Independência, para submeter a sociedade brasileira à sua visão muito peculiar sobre o que foi a maior operação de combate à corrupção de que o País já teve notícia. Com uma canetada, Toffoli declarou “imprestáveis” as provas obtidas a partir dos sistemas Drousys e My Web Day, dois instrumentos que fizeram rodar com eficiência germânica o notório “departamento de propina” da então Odebrecht, o centro nervoso do esquema do petrolão nos governos lulopetistas.

Segundo esse realismo fantástico toffoliano, a força-tarefa da Lava Jato em Curitiba teria se valido de “tortura psicológica”, algo que ele havia chamado de “um pau de arara do século 21″, para obter provas contra pessoas “inocentes”. De acordo com o ministro em sua decisão, a prisão de Lula teria sido “um dos maiores erros judiciários da história do País”, “uma armação fruto de um projeto de poder de determinados agentes públicos em seu objetivo de conquista do Estado”. Rasgando a toga para se lançar como analista político, Toffoli ainda avaliou que a prisão do petista seria fruto de “uma verdadeira conspiração com o objetivo de colocar um inocente como tendo cometido crimes jamais por ele praticados”, ação esta que representaria “o verdadeiro ovo da serpente dos ataques à democracia e às instituições” a partir da ascensão de Jair Bolsonaro.

Sabe-se que, entre idas e vindas, o STF entendeu que a 13.ª Vara Federal de Curitiba não era o foro competente para julgar Lula da Silva. A Corte entendeu ainda que o princípio da presunção de inocência não autoriza o cumprimento da pena antes do trânsito em julgado da decisão penal condenatória. Mas escapou ao ministro Dias Toffoli, por razões que não cabe a este jornal perscrutar, que as provas que o levaram a anular o acordo de leniência da Odebrecht e deram a largada para essa corrida pela impunidade foram obtidas por meios flagrantemente ilegais, o que ficou evidente no âmbito da Operação Spoofing.

Toffoli também parece ignorar que os delatores que agora pedem a anulação de seus acordos de colaboração premiada – e a devolução de milhões de reais pagos a título de multa – confessaram seus crimes e concordaram em devolver milhões de reais cada um à Petrobras e/ou ao erário. Ademais, todos esses acordos que teriam sido assinados “sob tortura psicológica”, um rematado disparate, foram considerados hígidos pelo próprio STF, que os homologou.

Essa esquizofrenia jurídica, chamemos assim, somada ao voluntarismo, à criatividade e às intenções pessoais de Dias Toffoli – que não esconde de ninguém sua genuflexão de penitência diante de Lula da Silva –, é o que tem levado uma plêiade de ex-executivos da Odebrecht e de outras empresas à Justiça para pedir a anulação de seus acordos com o Ministério Público Federal, entre outros órgãos de controle, e a devolução de multas milionárias que foram pagas como contrapartida da não persecução criminal em casos de desvios de recursos públicos confessados com espantosos níveis de detalhe.

Por piores que sejam as decisões do ministro Dias Toffoli sobre a Operação Lava Jato nesse ano que passou – decisões que, é bom enfatizar, até hoje não foram submetidas ao crivo do plenário do STF –, mais aviltante é o desrespeito da Corte à inteligência e à memória dos cidadãos e ao próprio Poder Judiciário como um todo, pois a ninguém interessa, como já sublinhamos, um STF voluntarista, instável e politizado.

14/9/2024

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