A descontinuidade de políticas públicas já causou muito mal à educação brasileira, trazendo enormes prejuízos para nossa juventude e ao país. Mais uma vez estamos diante desse risco. Apesar de ter chegado ao chão da escola apenas em 2022, o Novo Ensino Médio vem sendo bombardeado por corporações sindicais de professores, entidades estudantis e por parlamentares do campo da esquerda. Advogam sua revogação pura e simples, sem apresentar nenhuma alternativa a não ser o retorno ao velho sistema.
O sentimento passadista parece ter esquecido o quanto o antigo modelo foi danoso aos nossos jovens e ao país. Por décadas e décadas foi uma fábrica de evasão escolar. Um dado diz tudo sobre seu colapso: quatro em cada dez adolescentes de dezenove anos não terminam o ensino médio.
Embora tenha várias causas, inegavelmente muito contribuiu para esse quadro desastroso a forma como esse ciclo do ensino se estruturava. Currículo rígido com treze disciplinas, desconectado da realidade, dos anseios dos alunos e totalmente ao largo do ensino profissionalizante.
Esse modelo não formava cidadãos, não preparava os jovens para o mercado de trabalho nem para o ingresso no ensino superior. Contribuiu em muito para a formação de um exército de jovens que não vão à escola e nem atuam no mercado de trabalho.
Relatório da OCDE indica o Brasil como o segundo país com maior número de jovens entre 19 e 24 anos que não estudam e nem trabalham, em situação melhor apenas do que a África do Sul. Quando se amplia a faixa para até 29 anos, a proporção feminina de jovens nessa condição é de 27,3%, quase duas vezes mais do que jovens do sexo masculino.
O velho sistema deixa muita gente para trás e quem chega a concluir o ensino básico adquire uma educação de baixa qualidade. Segundo os resultados do SAEB de 2021, ao final da terceira série, apenas 31% dos alunos aprendem o suficiente em Língua Portuguesa e tão somente 5% em Matemática. Outro dado assustador: 40% dos concluintes sequer participam do ENEM. Os que conseguem ingressar no mercado de trabalho o fazem em funções menos qualificadas.
O Novo Ensino Médio veio para alterar essa realidade. Seu núcleo central é composto por um currículo flexível, com 60% de suas aulas destinados para a formação geral básica estruturada em quatro áreas de conhecimento – Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza e Ciências Humanas e Sociais Aplicadas.
E 40% destinados aos chamados itinerários formativos nos quais os alunos podem escolher o campo em que pretendem se aprofundar, de acordo com seu projeto de vida. Esse aprofundamento pode se dar em áreas de formação profissional ou em áreas do conhecimento, ampliando o tempo destinado à formação geral. A carga horária inicialmente subiu para mil horas/ano, sendo aumentada anualmente até atingir 1800 horas.
O desenho do Novo Ensino Médio não nasceu da cabeça de alguns iluminados. Levou em consideração o intenso debate ocorrido na Câmara de Deputados desde 2012, incorporando as principais ideias do Projeto de Lei de autoria do deputado Reginaldo Lopes (PT) e Wilson Filho (Republicanos).
Inspirou-se ainda em modelos de reforma educacional adotados em outros países, como Estados Unidos, Canadá, França, Alemanha, Finlândia, Austrália e Nova Zelândia. Esses países – bem ranqueados no sistema de avaliação internacional da educação – têm sistemas de ensino que buscam promover uma formação mais integrada, interdisciplinar e flexível, capaz de atender às demandas do mundo contemporâneo.
Uma das críticas ao Novo Ensino Médio é que se prioriza o ensino profissionalizante, em detrimento de uma formação humanista. Ela não se sustenta quando se considera que os itinerários formativos em áreas do conhecimento permitem um aprofundamento da formação geral ou quando comparamos o Brasil com a situação dos países desenvolvidos.
Aqui, apenas 9% dos alunos concluem a educação básica com um diploma do curso técnico, enquanto a média da OCDE é 38%. No Reino Unido e Áustria o percentual ultrapassa 60% e nos Estados Unidos e na Alemanha chega a 50%. Na França, o equivalente ao nosso ensino médio é mais focado na formação profissionalizante, com possibilidade de uma especialização a partir das escolhas dos alunos.
Assim, o núcleo do Novo Ensino Médio é meritório por abrir a possibilidade de ofertar aos alunos um currículo dinâmico e não enfadonho, sintonizado com seus anseios e projeto de vida. Reconhecer o mérito da reforma do Ensino Médio não significa fechar os olhos para problemas na sua implementação ou mesmo a necessidade de redesenhá-la em alguns aspectos, no sentido de seu aprimoramento.
Não se pode, contudo, perder de vista de que toda reforma tem seu tempo de maturação e que mudanças nos seus rumos deve se pautar em evidências científicas e não em se pinçar um ou outro caso para descontruir todo o Novo Ensino Médio.
O mais correto, portanto, parece ser o caminho seguido por São Paulo e outros estados: com autonomia e conhecimento de suas redes de ensino tiraram o Novo Ensino Médio do papel e enfrentaram os desafios advindos de sua implementação.
É injusto fazer tábula rasa do esforço dos estados para torná-lo uma realidade. No caso de São Paulo, entre 2019 e 2022 foram promovidos 1,6 mil seminários presenciais, com a participação de 140 mil estudantes e 18 mil professores. Em 2020, a rede pública paulista realizou consultas públicas on-line para implementação do Novo Ensino Médio, obtendo 400 mil contribuições. Já em 2021, foi feita a escuta de 154 mil estudantes e 18 mil professores, além de desenvolvidos e impressos os materiais de apoio para implementação dos itinerários formativos.
Muito dinheiro público também já foi investido na reforma. E, via o Programa Dinheiro Direto na Escola, São Paulo repassou mais de 3 bilhões de reais às escolas da rede estadual de ensino, com vistas a criar as condições materiais para a implantação da reforma.
Nessa linha, a consulta pública aberta pelo Ministério da Educação oferece a oportunidade do aprimoramento e de superação da omissão do MEC no governo passado no momento mais crucial, quando o Novo Ensino Médio começou a ser implementado. A consulta conseguirá cumprir seu papel se não estiver contaminada por um viés ideológico.
Não se pode ser ingênuo de desconhecer que parte das críticas ao Novo Ensino Médio decorre de interesses corporativistas contrariados ou por uma visão ideológica distorcida, segundo a qual existe um pecado de origem: ter sido concretizada no governo Temer, logo obra de um “golpista” na visão dos que são reféns da polarização ideológica.
A ideia daqueles que desejam suspender a reforma do Ensino Médio não esconde o rancor ideológico de seus autores. O presidente Lula não deveria ceder às pressões ou desautorizar seu ministro da educação, Camilo Santana, que já se posicionou a favor do avanço da reforma com as correções de rumo que se fizerem necessárias. Lula deveria enfrentar as corporações e aqueles aliados radicais que defendem o fim do novo modelo.
Ceder significará um gravíssimo retrocesso que levará o país de volta ao modelo anterior: perverso, gerador de desigualdades e inteiramente defasado dos anseios e projetos dos jovens do século vinte e um.
Mais uma vez comete-se um crime contra a educação com a descontinuidade de políticas públicas. Um vitória das patrulhas ideológicas; uma vitória do atraso.
Hubert Alquéres é membro da Academia Paulista de Educação e da Câmara Brasileira do Livro. Escreve às quartas-feiras no Blog do Noblat.
Ghisleine Trigo é vice-presidente do Conselho Estadual de Educação de São Paulo onde também preside a Câmara do Ensino Básico.
Rose Neubauer, secretária de educação do estado de São Paulo no governo Mario Covas, é presidente do Conselho Municipal de Educação da capital.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 5/4/2023.
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