Qué pasa, Argentina?

O diplomata Marcos Azambuja conhece bem a Argentina, onde foi embaixador do Brasil por cinco anos. É de sua lavra a frase segundo a qual existem três tipos de países: os desenvolvidos, os subdesenvolvidos e a Argentina. Ela vem a calhar diante do surpreendente resultado do primeiro turno das eleições, com o peronista e candidato governista Sérgio Massa abrindo uma vantagem de mais de seis pontos em relação ao ultradireitista Javier Milei.

Milei foi o mais votado nas primárias argentinas e depois disso todos os institutos e analistas o apontavam como favorito.

A dúvida era se liquidaria a fatura já no primeiro turno ou se haveria uma segunda rodada pró-forma. Todas as luzes focavam no fenômeno Milei, embalado pela epidemia de desilusão que varre um país cansado de tanto fracasso.

Em qualquer outro lugar do planeta dificilmente um candidato governista que tenha atrás de si uma inflação anual de 138%, uma pobreza na faixa de 40% da população e uma moeda em liquefação conseguiria ser o mais votado. Menos na Argentina. Como definiu o ex-presidente uruguaio Pepe Mujica: “Essa coisa só se explica porque a Argentina é indecifrável; por uma mitologia, o peronismo”.

O feito de Massa, um peronista bem mais ao centro do que Cristina Kirchner, é mais notável quando se leva em consideração seu status de ministro da Economia de Alberto Fernandez, um governo com desaprovação de 73%. Nem mesmo essa identificação com uma administração altamente impopular, da qual tentou se desvincular durante a campanha, impediu sua vitória no primeiro turno.

Talvez por passar uma imagem de moderado e agregador, adotando o discurso de união nacional. E certamente porque Milei exagerou na dose de antipolítica e de ultraliberalismo selvagem. Provocou mais temor do que paixão.

Recomenda a prudência não se fazerem prognósticos sobre o segundo turno. Ainda é uma incógnita como se movimentará o eleitorado de Patrícia Bullirich, terceira colocada com pouco mais de 23% dos votos. Em alguns momentos sua campanha foi mais dura em relação ao peronismo do que a de Milei. Seu perfil é conservador, assim como boa parte do seu eleitorado. Mas há ainda uma parcela de argentinos moderados refratários à pregação ultrarradical de Milei.

O momento é de tentar entender a alma dos argentinos, um povo que, segundo o historiador Halperin Donghi, “tem duas horas por dia de euforia e quatorze de depressão. O resto do tempo dorme… e mal”.

Faz-se oportuna, portanto, a leitura do livro Qué pasa, Argentina?, lançado em setembro e de autoria de Janaina Figueiredo, jornalista e correspondente do jornal O Globo em Buenos Aires. Por suas páginas desfila uma Argentina em decadência há 80 anos, 48 dos quais com uma inflação de dois dígitos e 15 com uma inflação de três dígitos.

Nesse largo período os argentinos conviveram com inflação alta, escassez de divisas e desvalorização da moeda. Além de recessões cíclicas. Aí nasce o seu fascínio pelo dólar, a descrença na sua moeda e nas instituições financeiras.  O medo de receber um calote vem da época do “corralito”, quando seus depósitos em dólar em bancos foram pagos na moeda argentina, com forte desvalorização. Desde então a obsessão é guardar a moeda americana em casa.

A alma dos argentinos é nostálgica. Sente saudades de quando lotavam as praias de Florianópolis e Búzios. Mas isso foi nos “tempos em que a Argentina era a Argentina”, como gostam de dizer ao se referir aos seus anos dourados. De sua belle époque só sobraram as avenidas largas, suas praças e sua arquitetura que dão a Buenos Aires a aparência de uma cidade européia.

Sim, os “hermanos” sentem saudades até mesmo dos anos 1950, quando o Papa Francisco concluiu seu ensino médio e a pobreza atingia tão somente 5% de sua população. E sentem-se humilhados porque o peso vale menos do que as moedas da Bolívia, do Peru e do Paraguai. É visível a presença nas ruas de Buenos Aires ou em pontos tradicionais como o Café Tortoni de turistas bolivianos, peruanos e paraguaios devido ao câmbio favorável à sua moeda. Isso puxa para baixo a autoestima dos argentinos.

Como explicar a decadência de um país que tinha tudo para ser uma Austrália ou Canadá?  Como foi possível um país que chegou nos anos de 1895 a 1896 a ter uma renda per capita superior à dos Estados Unidos fracassar tanto? A Argentina chegou a crescer 6% ao ano durante 35 anos, mas começou a entrar em parafuso na segunda metade dos anos 40, quando Perón chegou ao poder e adotou um modelo de economia fechada e de intervenção estatal, que persiste até hoje.

A Argentina tinha outras alternativas, mas elas foram abortadas. Em seu segundo mandato, Hipólito Yrigoyen, da União Cívica Radical, iniciou, na virada dos anos 20, um modelo de democracia liberal e de abertura da economia com vistas à sua modernização. Mas seu governo foi derrubado pelos militares em 1930. O golpe representou o início do período histórico definido como a “década infame”, com uma sucessão de fraudes eleitorais e intervenção militar.

Não apenas o peronismo fracassou, fracassaram todos os governos militares e fracassaram governos liberais. O mais recente, o de Macri, incapaz de fazer as reformas econômicas necessárias.  O descrédito e ceticismo dos argentinos nascem dessa cadeia de frustrações. Segundo Janaína Figueiredo, a Argentina é hoje um país no divã, cuja população recorre à psicanálise tal a sua angústia.  Talvez nem Freud fosse capaz de explicar o que se passa na Argentina.

O resultado do primeiro turno não desfez esses os sentimentos. A vitória de Massa pode até ter diminuído a possibilidade de um futuro mais tenebroso. Mas nada autoriza otimismo quanto à possibilidade de a “Argentina voltar a ser a Argentina”, como sonham os portenhos.

Se Milei é a não solução, Massa pode a ser a repetição de que “os peronistas são gerenciadores do poder, mas não sabem administrar um país”.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 25/10/2023. 

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