Um voto ao horror

É chocante e inaceitável o veto dos EUA à moção brasileira apoiada pelos demais estados membros, permanentes ou não, do Conselho de Segurança da ONU — com somente duas abstenções, da Rússia e do Reino Unido, equivalentes a voto sim —, por uma trégua para o envio de ajuda humanitária à população palestina na Faixa de Gaza.  

A explicação para um veto tão desumano veio horas depois, quando o Egito anunciou que, a pedido do presidente Joe Biden, ia abrir o posto de Rafah para comboios de caminhões entrarem na Faixa de Gaza com mantimentos, remédios, água, roupas e outros itens de primeira necessidade. 

Biden falou com o presidente egípcio Al-Sisi por telefone de Tel Aviv, onde chegara de manhã, enquanto o Conselho da ONU se reunia em Nova York. 

Foi de caso pensado. Biden quer protagonismo para impressionar seu eleitorado e atrair indecisos num momento em que as pesquisas para a eleição do ano que vem dão vantagem a Donald Trump. 

As atrocidades cometidas de lado a lado das forças em conflito interessam menos a Biden do que os dividendos políticos que pensa recolher para sua reeleição. 

O jogo é hipócrita e os americanos gostam disso. Netanyahu sai bonito na foto, por aceitar o pedido humanitário de Biden e receber dele apoio em carne e osso, com direito a porta-aviões nuclear e navio com tropas de desembarque navegando em direção a Gaza. Al-Sisi, um quase-ditador de extrema direita no Egito pós-primavera árabe, também sai bonito na mesma foto. 

O aparato naval do presidente americano nessa visita surpresa a Israel é para inglês ver. Alguém pode imaginar que o porta-aviões vá lançar caças-bombardeiros sobre Gaza para aniquilar o Hamas e seus subgrupos? 

Ou desembarcar soldados da Seal, a tropa de elite que matou Bin Laden, para lutar mano a mano com os terroristas? 

A Rússia já fala em deslocar bombardeiros armados com mísseis hipersônicos, e também capazes de disparar ogivas nucleares, para sobrevoar o comboio no Mediterrâneo. O mais provável de acontecer é Biden mandar a frota estancar no meio do mar e, para não passar muita vergonha, ensaiar alguma manobra naval por ali. 

Quem perde com esse teatro circense é o povo palestino, que toma na cabeça e nos ossos bombas incendiárias de fósforo branco que, se não matam suas vítimas instantaneamente vão causar aos sobreviventes dores e graves danos à saúde pelo resto de suas vidas. 

Bombas de fósforo são tão horripilantes que foram proscritas pelas convenções de Genebra, mas as potências não ligam para isso. O napalm também era proibido quando da guerra do Vietnã, mas os EUA usaram à vontade contra o vietcong e a população civil nas aldeias vietnamitas. A matança só parou quando a população norte-americana foi às ruas em massa por todo o país para dar um basta ao terrorismo de Estado em Washington e aos trogloditas do Pentágono. 

Hoje o mundo se choca horrorizado com os bebês degolados e mulheres israelenses estupradas, vivas ou depois de mortas, por monstros que se dizem tementes a Alá, e já se levanta em protestos nas principais capitais da América e da Europa contra os ataques indiscriminados das Forças de Defesa de Israel na Faixa de Gaza. 

É preciso que se dê um basta à insanidade de um governo extremista que cultua o terrorismo de Estado em Israel e um basta à bestialidade de grupos terroristas travestidos de militantes religiosos em Gaza, Cisjordânia e Líbano, por enquanto. 

Isto só pode ser feito se as grandes potências se unirem na ONU, dando toda força possível à organização mundial para estabelecer uma paz duradoura no Oriente Médio, restituir aos palestinos as terras roubadas desde a criação do Estado de Israel e décadas seguintes, implantar o Estado Palestino e manter uma força de paz permanente em toda a região. 

O veto de Biden torna esse sonho ainda mais distante e faz virar fumaça  as tentativas de pacificação como alternativa à carnificina e à barbárie. 

Nelson Merlin é jornalista aposentado e horrorizado.

19/10/2023

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