Histórias

Na tradição bíblica judaica, sem comprovação científica, a humanidade foi extinta por um Deus iracundo e decepcionado com sua criação, inundando a Terra com um dilúvio de chuvas torrenciais durante 40 dias e 40 noites — apropriadamente chamado de universal. Dessa extinção, restaram somente Noé e sua família.

Noé — que se torna então um segundo Adão — tinha três filhos e todos se abrigaram com suas esposas na arca que Deus mandara construir para sobreviverem ao dilúvio. Quando a chuvarada acabou, Deus arrependeu-se do estrago descomunal que havia feito e prometeu que nunca mais faria aquilo de novo. Com isso, os filhos de Noé e suas noras puderam sair e repovoar o mundo. 

Essa história está contada no Gênesis e, como já disse acima, não tem comprovação científica. Mas os crentes (de qualquer seita, religiosa ou não) não querem saber de comprovação científica. Para eles, vale o escrito. Então, vamos lá. 

Os filhos de Noé eram Sem (ou Shem), Jafé e Cam. Jafé e seus descendentes receberam ordens de Noé para seguiram para o norte, e a ele e aos seus devemos a existência dos europeus e asiáticos. Sem e os seus ficaram no meio do caminho, isto é, a Mesopotâmia, enquanto Cam e sua turma seguiram para o sul, povoando toda a região da Palestina e o norte da África (Egito, Líbia, Etiópia). 

Eventualmente, os primos se misturavam e descendentes de Cam são encontrados na Babilônia e de Sem, no sul. Os de Sem eram chamados semitas; os de Cam, cananitas, filhos de Canaã, descendente direto de Cam. Canaã era o nome dado naqueles tempos a toda a região que hoje conhecemos como Israel e Cisjordânia, além de partes de Líbano, Jordânia e Síria. 

Todos, portanto, eram primos entre si, do primeiro ao enésimo grau. Abraão era descendente direto de Sem e patriarca do povo judeu. Vivia em Ur, na Caldeia, sul da Mesopotâmia. 

Um dia, os primos babilônicos expulsaram os primos semitas e eles foram para o sul, segundo consta por ordem do próprio Abraão. Essa ordem contrariava frontalmente as de Noé, mas talvez Abraão tenha se referido ao sul da Mesopotâmia, onde vivia. Só que os semitas foram muito além e entraram em Canaã. 

Não era para os descendentes de Sem se meterem lá. A região deles era muito mais ao norte, onde hoje ficam o Irã e o Iraque. Para se estabelecerem em Canaã tomaram terras dos cananitas, até serem novamente expulsos. 

Os semitas então atravessaram toda Canaã e chegaram ao Egito, onde o faraó (talvez um descendente de Cam) autorizou-os a se estabelecerem num local do delta do Nilo reservado a refugiados estrangeiros e imigrantes indesejados. Lá ficaram por três séculos, segundo registros egípcios. 

A atividade econômica permitida a eles pelo faraó era fornecer palhas de trigo e milho para alimentar os fornos egípcios que fabricavam tijolos para a construção civil, templos religiosos e… pirâmides, muitas, cada vez mais numerosas e espetaculares. Era a atividade mais rentável do império, mas os semitas e outros imigrantes só podiam fornecer a palha, que era o combustível, e não o tijolo, que era o produto acabado. 

Os judeus protestaram, tijolos davam muito mais dinheiro do que palha de trigo. Os egípcios se cansaram das demandas e os  expulsaram do território. Mais uma vez os semitas estavam na rua da amargura. ]

Essa parte quem conta não é a Bíblia judaica, mas Arnold Toynbee em A Humanidade e a Mãe Terra, que tenho o privilégio de ler e reler infinitas vezes. Sobre as demandas ao faraó, a fonte é outra, de estudiosos de egiptologia. 

Os semitas retornam a Canaã, trazendo consigo uma nova mensagem divina segundo a qual aquela era a terra prometida, não mais as do norte. Claro que deu briga feia, para dizer o mínimo. 

As narrativas vão por aí até que chegam as tropas romanas em fins do último milênio AC e dominam toda Canaã, separando os primos para poderem reinar em paz. Palestinos cananitas para um lado, semitas para o outro. Mas nessa altura os povos e “primos” da região estavam muito misturados, o que dificultava ou tornava impossível uma separação efetiva. 

Corte rápido: registro neste ponto que a narrativa bíblica considera os semitas israelitas como invasores dos palestinos cananitas juntamente com os governantes romanos de Canaã. 

Segue o filme. Os romanos não queriam saber de conversa e puniam cruelmente os rebeldes, o que levou os semitas israelitas a fazerem acordos de adesão à ocupação romana, enquanto os palestinos cananitas conspiravam contra o domínio estrangeiro. Um deles se chamava Jesus, que diferentemente dos extremistas “modernos”, pregava não a espada mas algo muito mais complexo e revolucionário expresso na palavra amor. 

Agora, substitua o império romano pelas potências ocidentais de hoje, que criaram o Estado de Israel bem no meio da Palestina em 1948. É pau no lombo dos palestinos o tempo todo, com o confisco progressivo de suas terras em guerras contínuas e o sufocamento territorial para os sobreviventes. 

Se a Bíblia judaica pudesse passar por uma atualização, como descreveria a situação dos primos nos novos tempos? E o que diriam Noé e Abraão para os seus descendentes modernos? 

Nelson Merlin é jornalista aposentado e leitor de histórias. 

26/10/2023. 

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