“Os nativos estão inquietos”

– “Os nativos estão inquietos.”

Paulinho Nogueira costumava falar essa frase cada vez que os aparelhos de TV da redação mostravam os desfiles das escolas de samba, enquanto nós, da editoria de Reportagem Geral do Jornal da Tarde, ficávamos à espera da chegada dos textos e das fotos enviados pelos nossos colegas na avenida.

Repórteres de teclinhas e de máquinas fotográficas estavam cansados de saber, é claro, do deadline, o horário de fechamento. Enviavam os textos e as fotos no horário combinado, para que, na redação, nós, do fechamento, puséssemos tudo nas páginas, a Diagramação mandasse para a gráfica, e a gente, fechado o jornal, fosse enfim tomar algumas – em geral no Bar do Alemão, na Avenída Antárctica, a principal ligação entre o Limão, do outro lado do Tietê, e os diferentes bairros em que todos nós morávamos.

Os colegas de texto e foto, é claro, continuavam na avenida madrugada afora, cobrindo a parte do desfile que o jornal só publicaria no dia seguinte.

– “Os nativos estão inquietos.”

Foi a Mary, dois dias atrás, conversando com a Dona Lúcia ao telefone, e falando com ela sobre a chegada do carnaval, que se lembrou que havia aquele bordão, e, da sala, gritou: – “Como é que era mesmo aquela coisa que vocês falavam no jornal quando o carnaval começava?”

– “Os nativos estão inquietos.”

Hoje, noite de sexta-feira de carnaval, a primeira escola de samba da elite do carnaval paulistano entrando no Anhembi, batucando tambores como os nativos que assustavam os colonizadores ingleses, aqueles filhos da puta, me deu vontade de escrever um suelto, uma bobagenzinha, umas lembranças sobre isso.

E aí me ocorreu que carnaval é como Woody Allen.

Não há pessoas indiferentes a Woody Allen. Há os que amam de paixão e os que odeiam de paixão.

Carnaval também é quase assim.

E há poucas coisas mais chatas na vida de pobres jornalistas que não gostam de carnaval – como o Paulinho Nogueira e eu, por exemplo – do que ter que trabalhar no plantão do carnaval nas matérias sobre carnaval.

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Quando é que foi aquilo – aqueles carnavais em que o Paulinho anunciava que os nativos estavam inquietos?

Final dos anos 70, começo dos 80, seguramente. E, nossa, enquanto começava a escrever estas bobagens, me vieram à cabeça tantas lembranças dos carnavais que passei nos plantões da Geral do JT… Cacete, me lembrei que, ali por 1976, 1977, eu era sub-editor e caía para mim os plantões de carnaval. Anélio Barreto era então o editor, e claro que o editor tinha direito a escolher quando folgar, se no carnaval ou na Semana Santa, e é claro também que o Anélio preferia folgar no carnaval. E me lembrei que, naqueles anos, a Reportagem Geral tinha duas copydesks cariocas que sabiam tudo de carnaval, ao contrário do mineirim aqui que jamais soube diferenciar muito bem a União da Ilha da Beija-Flor. Deus meu: naquela época, eu era sub-editor e Regina Lemos e Márcia Lobo eram copies! Eta mundo doido… (Fui chefe da moça que viria a ser minha mulher, e que mais tarde seria minha chefe na redação da revista Marie Claire. Acho isso uma deliciosa peça do destino.)

Mas aí isso que era para ser um suelto virou pura memória pessoal e afetiva…

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Vixe Maria: uma coisa leva a outra, e aí me lembrei que houve um ano em que havia uma foca bonitinha, gostosinha, que foi pautada para cobrir o desfile do segundo ou terceiro grupo de escolas, no Ipiranga, e o lobo que havia no sub-editor da Geral deu um jeito de ir ao Ipiranga e se encontrar com a moça, que estava usando um shortinho, e convidou para um chopinho, e tal e coisa, e coisa e tal – e aí começou um namoro que durou um bom tempo, e depois virou uma gostosa amizade que atravessaria décadas. Só não falo o nome dela porque precisaria de sua aprovação…

Hoje talvez me acusassem de assédio sexual a funcionária subalterna, crime inominável.

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Paulinho Nogueira era um sujeito que conhecia profundamente rock e pop. Poderia ter sido um ótimo crítico de música. Como fã do melhor do rock e do pop, não tinha qualquer apreço pelo baticum das escolas de samba – e por isso, claro, criou o que viria a ser seu bordão.

Coisa, hoje, absolutamente, criminosamente incorreta. Imagine: dizer atualmente que o baticum das escolas de samba parece indicar que os nativos estão inquietos é crime de primeiríssimo grau no Código Penal do Politicamente Incorreto.

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Os nativos continuam inquietos. E creio que dá para dizer, como tantos saudosistas dos tempos do lança-perfumes, que os velhos carnavais eram melhores…

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P.S.: Mary terminou o artigo dela que sai no domingo no Blog do Noblat (e aqui), e foi para a sala. Depois que terminei este suelto e pus no ar, desliguei a máquina e fui também para a sala, onde a outra máquina estava ligada – na Globo, com o desfile das escolas de São Paulo. Vimos boa parte do desfile da Acadêmicos do Tatuapé e um tanto da Barroca da Zona Sul. Repito que não entendo lhufas de carnaval – mas mesmo um analfabeto no assunto como eu pode ver que as escolas de São Paulo melhoraram demais. Claro que os cariocas não vão admitir isso nunca, mas a verdade é que as escolas paulistas já não ficam atrás das do Rio de Janeiro.

Mais que uma cidade, São Paulo é mesmo um mundo – e um mundo danado de competente. O que São Paulo resolve fazer, faz bem pra cacete.

17 e 18/2/2023

A foto – do desfile da Acadêmicos do Tatuapé – é de Rubens Cavallan/Foihapress.

Um comentário para ““Os nativos estão inquietos””

  1. Orra, meu! Um singelo suelto virou uma deliciosa crônica de Carnaval. Ganhei a noite sem ligar a tevê.

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