Há cem dias, havia a esperança de que Lula pacificaria o país. Esse sentimento parecia se confirmar com a promessa do novo presidente, em seu discurso de posse: “Vou governar para 215 milhões de brasileiros e brasileiras, e não apenas para quem votou em mim. Vou governar para todos e todas, olhando para nosso luminoso futuro em comum, e não para o retrovisor de um passado de divisão e intolerância”.
O presidente que assumia o cargo parecia ter exata noção do mal ao país causado pela polarização e da necessidade de sua superação: “A ninguém interessa um país em permanente pé de guerra, ou uma família vivendo em desarmonia… Juntos, somos fortes. Divididos, seremos sempre o país do futuro que nunca chega, e que vive em dívida permanente com o seu povo”.
Até por pragmatismo, o desarmamento dos espíritos convinha ao novo governo. Afinal, Lula se elegeu com uma diferença de apenas 1,8% dos votos, uma clara demonstração do quanto o país saiu dividido das urnas.
Nessas condições era mais do que óbvio que o governo enfrentaria uma oposição com sangue nos olhos e radicalizada. Deveria, portanto, fazer todo esforço possível para manter o apoio do eleitorado não petista que votou em Lula para evitar a vitória de Jair Bolsonaro. Olhar para frente, superar a polarização, unir o país, passaria a ser estratégico se o presidente quisesse ter seu governo bem avaliado.
A intentona da extrema-direita representou, de um lado, uma grave agressão aos três poderes da República, ameaçando, assim, a sobrevivência da nossa democracia; de outro, abriu uma chance de ouro para Lula realizar um verdadeiro governo de união nacional. Foram criadas as condições para o presidente avançar na pacificação do país, uma vez que o episódio de 8 de janeiro gerou repulsa e coesão da maioria dos brasileiros apegados a valores democráticos. Os três poderes se uniram na condenação do maior atentado ao Estado de Direito Democrático desde o golpe de 1964.
Essa oportunidade foi desperdiçada por um presidente ressentido e com faca entre os dentes. Quem esperava um líder como Nelson Mandela, capaz de conciliar o país ao sair da prisão, frustrou-se com um Lula mesquinho, vingativo, com o objetivo de vida de “f… o Moro”. O Lula 3 pouco ou quase nada tem do “Lulinha, paz e amor” do seu primeiro mandato. Em vez do “futuro luminoso”, ficou com os olhos mirados no retrovisor, como atesta sua polarização com Sérgio Moro e com o próprio Bolsonaro.
Na economia, suas declarações estiveram muito mais para a nova matriz econômica dos tempos de Dilma Rousseff do que para o arcabouço fiscal. Elegeu os juros, o mercado, a autonomia do Banco Central como inimigos a serem demonizados.
O Lula do terceiro mandato pinta mais à esquerda do que o da Carta aos Brasileiros. Seu modus operandi é o da polarização permanente, do “nós versus eles”, de estímulo ao tensionamento do país.
Certamente fidelizou a sua base social, particularmente o eleitorado mais à esquerda, com medidas como a raivosa e inócua suspensão dos prazos de implementação do Novo Ensino Médio.
Segmentos radicalizados devem ter vibrado com o cancelamento, por parte do governo, da medalha Princesa Isabel, “herdeira do trono imperial e uma mulher branca”.
Assim como o MST não tem do que reclamar da postura do governo de não condenar as invasões de terras produtivas que voltaram a ocorrer com o retorno de Lula ao poder.
A estratégia de tensão permanente como contraposição ao foco na união nacional, tem dois problemas seriíssimos. De um lado, o governo Lula nestes cem dias não estabeleceu pontes com os 49,1% do eleitorado que votou no seu adversário. O universo evangélico, um segmento em expansão, mantém-se impermeável e refratário ao credo governista. De outro, impede uma aliança sólida com o eleitorado do centro, que, circunstancialmente, esteve ao seu lado no segundo turno da disputa presidencial.
Assessores e políticos próximos ao presidente o tem aconselhado a adotar uma postura menos conflitiva porque sua popularidade pode ser afetada por seus rompantes de intolerância e de apego ao mofo ideológico. O que, de fato, já está ocorrendo. Eleito por pouco mais de 51% dos votos, a aprovação ao seu governo é a menor do início de seus mandatos, situando-se em 38%, segundo o Datafolha. Ou seja, cerca de oito milhões de pessoas que votaram em Lula para evitar o pior não comungam da avaliação positiva de seu governo.
Lula faz ouvidos de mercador e se irrita com as críticas. É uma marca do caudilhismo se julgar infalível e dono da verdade absoluta. A postura de não tolerar qualquer crítica – mesmo quando elas vêm de pessoas do seu círculo íntimo e feitas em ambientes fechados – finda por acentuar os erros.
A polarização tem o seu preço. Em um país praticamente dividido ao meio, ela serve de dique de contenção para o crescimento da aprovação do governo, como as pesquisas já indicam, e retroalimenta uma oposição sem quartel no Congresso e na sociedade. Além de inibir ganhos de popularidade mesmo quando o governo acerta, como aconteceu no socorro aos ianomâmis, na volta de protagonismo na política externa e na pegada social, que sempre foi um traço forte de Lula.
O presidente queimou capital nos primeiros cem dias e perdeu uma grande oportunidade para pacificar o país no período da lua de mel. Teoricamente ainda há bastante tempo para fazer com que a promessa de união nacional, defendida em seu discurso de posse, não tenha sido apenas palavras que os ventos levaram.
Mas dois fatores conspiram contra a possibilidade de mais à frente Lula promover a conciliação nacional: a alma bélica do presidente, forjada no embate “nós versus eles” desde seus tempos de sindicalista, e o próprio interesse político de Lula de manter a polarização com Bolsonaro.
Aliás, estamos diante de interesses recíprocos, uma vez que a estratégia do ex-presidente também está pautada na repetição, em 2026, da mesma rinha da última disputa presidencial. Ambos operam para impedir a existência de um centro pautado na moderação e na busca de soluções pactuadas para os graves problemas nacionais.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 12/4/2023.