Depois de quatro anos de ordens do dia laudatórias ao 31 de março de 1964, este ano não haverá pronunciamento das Forças Armadas. A decisão tomada pelo ministro da Defesa, em sintonia com os três comandantes militares, se deu sob o impacto negativo do 8 de janeiro e tem objetivos de curto e longo prazo. No imediato visa a não jogar lenha numa fogueira cujas labaredas ainda não se extinguiram totalmente. Não falar da data – nem contra nem a favor – é uma maneira de distensionar o ambiente. Dentro e fora dos quarteis.
A manobra de maior fôlego ensaia um movimento similar ao recuo organizado aos quartéis quando da transição democrática de 1985. Lembrete: esse recuo se deu com os militares e não contra os militares, como preconizava o então presidente José Sarney. E propiciou o período mais longo de nossa história sem intervenção militar ou quartelada.
Com a manobra, as Forças Armadas voltaram-se exclusivamente para suas funções constitucionais e profissionais, granjeando o respeito dos brasileiros. Tornaram-se uma das instituições mais respeitadas, como a mão amiga em ações de socorro à população. Essa imagem começou a ser arranhada com a volta do ativismo político, do qual o famoso tuíte do general Eduardo Villas Boas, então comandante do Exército, foi um marco.
No governo Bolsonaro a politização da tropa ganhou escala. A presença de militares no governo, portanto na esfera política, foi exagerada, com o então presidente apagando as fronteiras entre as Forças Armadas como instituições de Estado e o seu governo. O efeito de um processo corrosivo e nocivo às Forças Armadas explodiu no 8 de janeiro, com a omissão de parte da cadeia de comando.
A demissão do comandante do Exército, general Júlio César Arruda, por tentativa de “blindar” militares e familiares envolvidos na intentona da extrema-direita, deu bem a dimensão do quanto a hierarquia e a disciplina, valores fundantes de qualquer exército do mundo, tinham sidos esgarçadas.
Confirmou-se a velha sentença de quando a política adentra nos quarteis tais valores saem pelos fundos. Restabelecê-los exigia afastar a política do ambiente castrense. E essa passou a ser a grande missão dos novos comandantes das três forças e do ministro da Defesa, José Múcio Monteiro.
Em outras palavras, as Forças Armadas deveriam voltar a se comportar como instituições de Estado e não do governo, como sucessivamente têm manifestado seus comandantes no governo Lula. A operação em curso implica em sair do palco da política para se dedicar a seus afazeres profissionais e constitucionais.
A decisão de não ter ordem do dia no aniversário do golpe de 1964 é um componente desse segundo recuo organizado aos quartéis. Mas não o único. Faz parte da mesma estratégia a articulação pelo ministro da Defesa de uma PEC do Executivo para vetar o retorno à ativa de militares que disputarem eleição ou que exerçam cargos de ministros.
Também tem o mesmo objetivo a decisão dos três comandantes de exigir de seus militares da ativa a desfiliação partidária e a decisão do comandante do Exército, general Tomás Paiva, de proibir oficiais e sargentos a ter perfis nas redes sociais com a identificação de suas patentes.
O Superior Tribunal Militar está alinhadíssimo com a estratégia de despolitização da tropa, prometendo endurecer o jogo com o militar que infringir o dispositivo que proíbe membros da ativa a se manifestar de forma político-partidária ou fizer ameaças ao Estado Democrático de Direito.
Houve uma mudança do ambiente até mesmo na relação de Lula com as Forças Armadas. Inicialmente de desconfiança, vai entrando nos eixos, sobretudo porque a cadeia de comando, com os episódios da não promoção do coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordem de Bolsonaro, e do afastamento do general Henrique Dutra do Comando Militar do Planalto, demonstrou estar comprometida com a “descontaminação” da tropa.
Muito dos novos ares deve-se ao ministro da Defesa, José Múcio, uma das escolhas acertadas de Lula. Mas não tem sido fácil a sua vida. Quando da eclosão do 8 de janeiro, a ala esquerda do PT chegou a pedir sua cabeça. Agora, queria que o ministério da Defesa divulgasse uma ordem do dia em 31 de março, condenando o golpe de 1964. Preferiu a linha prudencial, não tocar no tema para não comprometer a estratégia de despolitizar a tropa, tendo a cadeia de comando como parceira da nova orientação.
A vida está provando o acerto de, na atual conjuntura, ter um ministro da Defesa de espírito conciliador, capaz de restabelecer o papel das Forças Armadas como instituição de Estado pela via do diálogo e não pela via do enquadramento. Isso não significa perda de autoridade ou do princípio de que elas se estruturam de forma vertical e hierárquica.
Seria ingenuidade subestimar o peso do bolsonarismo entre os militares, sobretudo na oficialidade mais jovem e nos escalões intermediários. O processo de desidratação dessa influência será muito mais longo e mais complexo, assim como o será na sociedade como um todo. O vírus da politização pode provocar novos episódios de quebra da hierarquia e da disciplina, mas possivelmente de forma isolada e nada comparável ao oito de janeiro.
Nenhum processo é linear. É, na maioria das vezes, cheio de idas e vindas, mas sente-se hoje a existência na cadeia de comando a determinação de conduzir as Forças Armadas em estrita observância do seu papel constitucional.
O novo clima está em sintonia com a forma como o Brasil transitou do regime militar para a democracia: de forma pactuada. Ele possibilita virar a página e deixar para trás os tempos em que o país ficava em suspense toda vez que era expedida uma ordem do dia louvando o 31 de março de 1964.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 1º/4/2023.
Vai ser difícil para as forças armadas voltarem hein? Principalmente exército que saiu como melancia, e agora? Alguém sabe se existe fruta ou outra coisa que é verde por fora e vermelha por dentro para os caxias voltarem disfarçados de novo, já que de melancia está manjado.