Assassinato na sala de aula

Riobaldo, personagem imortalizada por Guimarães Rosa na sua obra seminal Grande Sertão: Veredas, dizia que viver é perigoso. Parafraseando o grande escritor, dar aula passou a ser perigoso diante da onda de problemas com a saúde mental que invadiu o ambiente escolar, agravados no período da pandemia.

O mais recente episódio aconteceu na manhã desta segunda-feira, na escola Thomázia Montoro, Vila Sônia, em São Paulo, com o assassinato a facadas da professora Elizabeth Tenreiro por um adolescente de 13 anos. O jovem deixou um rastro de sangue, ferindo mais três professoras e dois alunos.

Elizabeth morreu no ambiente que dava sentido à sua vida: a sala de aula. Aos 71 anos e aposentada como ex-funcionária do Instituto Adolpho Lutz, decidiu ser professora há uma década. Não por necessidade financeira, mas para adotar a nova profissão como sacerdócio. Inescapável traçar um paralelo entre essa tragédia com o massacre acontecido há quatro anos na Escola Raul Brasil, em Suzano, na qual dois ex-alunos assassinaram cinco estudantes e dois funcionários da escola, suicidando-se em seguida.

A ligação entre os dois episódios foi feita pelo próprio adolescente que vitimou a professora Elizabeth.

Em seu depoimento à polícia, o jovem disse ter se inspirado no massacre de Suzano.  Como os dois assassinos da Raul Brasil, usava uma balaclava preta com a figura de uma caveira, símbolo de uma organização neonazista. Choca saber que o algoz da professora Elizabeth já planejava assassinar alguém aos 11 anos, quando era apenas uma criança.

Na sua página do Twitter, usava o nome de um dos assassinos da Raul Brasil. Seu plano era também se suicidar, após matar duas ou mais pessoas. É como se houvesse uma cadeia interligando tragédias. Os dois jovens de Suzano se inspiraram no massacre da escola de Columbine, no estado americano do Colorado.

Segundo a psicóloga Vera Iaconelli, diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, agressões, assassinatos e suicídios nas escolas “são fatos epidêmicos no ambiente escolar nos Estados Unidos que o Brasil parece querer mimetizar por influência das redes sociais, somados ao recente incentivo de uso de armas para resolver conflitos em nosso país”.

Vera enxerga uma sociedade que marcha para a autodestruição, com as escolas “tendo de dar conta do que nenhum outro espaço parece estar sendo capaz de escutar”. Mas a escola não pode falhar na sua missão de escuta, de ser um espaço de diálogo e de disseminação da cultura da paz.

Os fatos dão razão a ela. Nos últimos quatro anos, foram oito tragédias similares no país, sem falar em agressões a professores e funcionários. A banalização da violência, um fenômeno presente na sociedade, invadiu o espaço escolar, impondo novos desafios e novas missões a gestores, educadores e demais profissionais da educação.

Seria injusto desconhecer a enorme dedicação de tais profissionais, bem como o esforço da rede pública de ensino no sentido de acolhimento e de desenvolvimento de competências socioemocionais fundamentais para a superação do trauma deixado por cada tragédia e para evitar que novas tragédias aconteçam.

Dou um testemunho pessoal.

Como membro no Conselho Estadual de Educação estive na Raul Brasil nos dias seguintes ao atentado. E, no segundo semestre do ano passado, três anos após o massacre, voltei a visitar a escola.

Impossível não se emocionar ao constatar que a escola tinha dado a volta por cima, respirando um clima de paz, de convivência, e, sobretudo, de pertencimento, de comunhão de destino. Percebi isso não apenas entre seu corpo de educadores e gestores, mas também entre os alunos e funcionários.

Isto só foi possível porque todos somaram esforços: a comunidade próxima à escola, a sociedade, o Estado, as universidades, profissionais de diversas áreas, todos com o mesmo propósito: dar suporte para que a Raul Brasil fizesse a travessia e se reencontrasse com seu ethos de centro de formação de futuros cidadãos, capacitados a prosseguir em seu percurso acadêmico.

A Secretaria da Educação teve papel fundamental neste processo: investiu em atividades para melhor convivência escolar, com o programa Conviva, ajudando os profissionais a mediar conflitos, e ofereceu serviços focados na saúde mental.

Somando-se às ações de convivência e atendendo à necessidade da rede, passou a ofertar atendimento psicológico para alunos, docentes e servidores nas 5.113 escolas, por meio de profissionais credenciados. Esses atendimentos ocorrem 100% online e de forma coletiva nas escolas, Diretorias de Ensino e órgãos centrais. Foram realizados 263.593 encontros até outubro de 2022 – uma média mensal de 23.964 horas.

O videomonitoramento nas salas de aula e ambientes escolares, a criação de um Gabinete Integrado de Segurança e Proteção escolar entre as secretarias de Segurança e da Educação e o reforço da ronda escolar garantiram a volta por cima da Raul Brasil e protegeram tantas outras unidades da rede estadual de ensino.

Sim, é possível superar o luto e a dor. Mas com muito empenho e planejamento. No caso da escola de Suzano, ela também passou por uma grande reforma, adquiriu cores vivas e tudo, absolutamente tudo, foi pensado para criar um astral de concórdia e de empatia. Nesse sentido, é uma experiência a servir de exemplo para que a Thomázia Montoro também supere sua dor e pais de alunos, professores e funcionários se reencontrem em torno do bem comum.

Nas tragédias, as perdas são irreparáveis. Mas também nelas afloram a grandeza humana. Na Raul Brasil. a merendeira Silmara Moraes, então com 49 anos, se agigantou quando ouviu tiros no pátio. Abriu a porta da cozinha, botou o rosto para fora e gritou para as crianças: “entrem, entrem”.  Em seguida, empurrou o freezer para fechar a porta e fez uma barricada para os assassinos não invadirem a cozinha e a dispensa. Com isso salvou a vida de mais de 60 alunos.

Na escola da Vila Sônia, o número de mortos só não foi maior graças à ação da professora de educação física Cintia da Silva Barbosa, que imobilizou o agressor, e de outra professora, Sandra Pereira, que tirou a faca da mão do assassino.

Silmara, Cintia e Sandra são heroínas, exemplos do que há de melhor como ser humano.

São elas que nos fazem crer que ainda viveremos em um mundo no qual uma professora nunca mais será assassinada dentro de uma sala de aula.

Hubert Alquéres é membro da Academia Paulista de Educação, do Conselho Estadual de Educação e da Câmara Brasileira do Livro.

Este artigo foi originalmente no Blog do Noblat, em 29/3/2023. 

 

 

Um comentário para “Assassinato na sala de aula”

  1. Quando se come algo estragado é a mesma coisa com Lula de volta na presidência. Brasil está com diarreia.

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