Era uma vez um moleque meio pobre meio arrogante que sonhava com ouro e pedras preciosas na piscina do Tio Patinhas. O moleque cresceu e virou milico. O milico não cresceu e continuou sonhando com ouro e pedras preciosas.
Um dia o milico chegou à conclusão de que a tropa ganhava muito mal. Mas em vez de tentar uma solução digamos pacífica para o enredo, quis dinamitar o quartel e o sistema de esgotos da cidade em protesto.
Fez croquis dos atentados e escreveu no papel as instruções. Um capitão descobriu e o denunciou. O milico, então tenente, foi preso, julgado e condenado na Justiça Militar. Mas recorreu e o novo perito contratado pela defesa alegou que não era possível comprovar se as palavras e frases escritas no plano de atentados era mesmo da mão do tenente. O primeiro não tivera dúvidas. Mas o novo promotor e o novo juiz, para surpresa geral, acreditaram no novo perito e absolveram o tenente por insuficiência de prova.
Esse veredito desencadeou uma série de fatos mortíferos nos anos e décadas seguintes. Como a borboleta que decola no Oriente e deflagra um ciclone tropical do outro lado do mundo.
À época, o tenente era candidato a vereador na cidade e foi eleito pela rapaziada da tropa, da PM, da Polícia Civil e das milícias como seu fiel representante na Câmara Municipal.
E o moleque que virou milico, largou a farda e virou vereador, e continuou virando alguma coisa mais, continuou sonhando com a piscina do Patinhas. Eita sonho bom…
Um dia, o ex-milico virou presidente da República, no vácuo deixado por lambanças mil do PT, PMDB, PP, PL e outros menos votados durante os anos dourados de 2003 até o impeachment de 2016. E uma vez presidente, agregou aos seus sonhos infantis o de ser presidente vitalício, como foi Chávez (seu ídolo à época) na Venezuela — que o câncer levou; como foi Idi Amin Dadá na África, como foi a turma dos ton-ton macute no Haiti — que caíram de podres.
Nos seus delírios napoleônicos, ele jamais cairia. Teria o apoio sempiterno das Forças Armadas, do do seu gado de eleitores e das burras do Tesouro Nacional postas ao seu dispor pela Câmara e o Senado Federal, então territórios dominados. Mas veio a eleição de 2019 e ele caiu por uma mixaria de votos ante o ex-presidiário cujo legado o havia alçado à Presidência da República quatro anos antes. Uma ironia mortal.
Mas, mesmo derrubado pelo voto popular, o ex-milico continuou sonhando com o ouro e as jóias do Patinhas. Eita sonho ruim…
Agora, ouro e jóias não vinham dos gibis da infância, mas do Oriente. Como se sabe, os árabes não dão nada de graça e na cabeça do ex-milico os presentes eram para ele e mais ninguém, em troca de quê ainda nada se sabe. Mas deve ser coisa muito secreta, pois o sujeito achou que podia fazer e desfazer dos tesouros das arábias como lhe aprouvesse.
Coisa dos contos de Ali Babá, que ele deve ter lido entre um gibi e outro do Patinhas. Agora está mais enrolado que parafuso espanado.
Bem dizia minha avó, viúva de general de brigada de outros tempos, que eu não devia ler só gibis de Walt Disney, e minha mãe não deixou por menos: comprou então as coleções de Érico Veríssimo, Karl May, Maravilhas do Conto Russo e, de arremate, a enciclopédia Delta Larousse, para eu me encaminhar na vida.
Quem pagou foi minha avó, com gosto. E eu li e reli, deslumbrado, que a vida era mesmo outra coisa.
Nelson Merlin é jornalista aposentado e leitor inveterado.
17/8/2023