Falta de luz é culpar a privatização

Houve dez apagões no Brasil nos últimos anos – nove quando a Eletrobrás era estatal. Mas o apagão desta terça-feira, dia 15, segundo os petistas, foi por causa da privatização da empresa.

Falta de luz é isso aí.

A cegueira ideológica faz os petistas falarem sandices sem qualquer base na realidade.

O Estado de S. Paulo e o Globo fizeram editoriais nesta quinta-feira contra esse absurdo, e os jornalistas Merval Pereira e Malu Gaspar também escreveram artigos mostrando a falta de sentido dessa politização de um evento que precisa ter explicações técnicas, sérias, cabais.

“Em contraste com outros apagões, os reservatórios hoje estão cheios, existe oferta de energia e não há excesso de demanda”, escreveu O Globo. “Mas fatos raros acontecem. Por isso mesmo, o governo tem obrigação de explicar o que aconteceu, por que aconteceu e dizer o que fará para evitar que se repita. Não dá para politizar uma questão essencialmente técnica nem tratar problema de tamanha gravidade de forma tão rasteira.”

“A falta de transparência criou um ambiente perfeito para a profusão de oportunistas, que atribuíram o incidente a causas que vão do aumento da presença de fontes renováveis e intermitentes na carga a uma alegada falta de segurança no sistema elétrico”, escreveu O Estadão. “Ao pior papel, no entanto, prestou-se o próprio governo. Em vez de tratar o caso com a prudência recomendada, o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, transformou o apagão em um episódio político. (…) O ministro aproveitou o momento para criticar a privatização da Eletrobras, insinuando que a desestatização da empresa teria comprometido a segurança do sistema elétrico.”

Merval Pereira lembrou o óbvio: “Não há nada que mostre que a privatização foi a causa, mesmo porque já tivemos outros apagões no país inteiro”. E concluiu, sensatamente: “É preciso surgir uma explicação técnica plausível, para que não se dê margem a teorias da conspiração também plausíveis nestes tempos em que vivemos”.

Tempos terríveis estes em que vivemos.

Malu Gaspar lembrou que, quando houve um apagão parecido, em 2009, o presidente também era Lula; na época, o ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, atribuiu o problema a ventos e raios. “Desta vez, o bode expiatório foi a privatização da Eletrobras. A primeira-dama, Janja, puxou o cordão: “A Eletrobras foi privatizada em 2022. Era só esse o tuíte”, postou. Deputados e senadores da base governista foram na mesma toada, sugerindo que o “crime” da privatização levou à queda nos investimentos da companhia — e que essa era a causa do apagão. No final do dia, o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, deu uma entrevista de mais de uma hora em que passou a maior parte do tempo criticando a privatização da Eletrobras, ainda que a pergunta fosse noutra direção.”

Aqui vão as íntegras dos quatro textos. (Sérgio Vaz)

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Governo e PT erram ao tentar politizar apagão

  • Editorial, O Globo, 17/8/2023

Ao longo da terça-feira, quando o país viveu o maior apagão desde 2009, as narrativas prevaleceram sobre os fatos. Uma questão de fundo técnico foi imediatamente politizada. A primeira-dama Janja da Silva publicou, antes de qualquer análise ou diagnóstico das causas, mensagem numa rede social pondo a culpa na privatização da Eletrobras. Líderes petistas seguiram o mesmo caminho. Até o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, pôs a empresa na berlinda, embora tenha dito ser “leviano” apontar relação de causa e efeito entre o apagão e a privatização.

A politização abriu caminho ainda a críticas às fontes alternativas de eletricidade. Mesmo que o apagão possa ter tido origem na sobrecarga de uma usina eólica e que a energia tenha demorado mais a voltar nos estados que dependem da geração por vento ou solar, a falha técnica, rara, não é pretexto para a adoção de fontes de energia mais poluentes. O problema não está ligado às usinas em si, mas à gestão do sistema. Apenas uma apuração consistente das causas será capaz de apontar o que precisa ser corrigido para evitar episódios semelhantes.

Silveira anunciou ter pedido à Polícia Federal e à Abin abertura de investigações sobre suspeitas de sabotagem. É verdade que, depois dos ataques golpistas do 8 de Janeiro, foram registrados atentados a torres elétricas, mas por enquanto não há indício de nada do tipo. De acordo com informações preliminares, o sistema foi atingido por duas falhas simultâneas em linhas de transmissão.

Uma ocorreu no Ceará, numa linha da Chesf, subsidiária da Eletrobras, devido à sobrecarga num momento em que a geração dependia mais de usinas eólicas e solares — segundo Silveira, o evento foi de pequena magnitude e não seria capaz, sozinho, de causar o apagão. A segunda, possivelmente na subestação de Xingu, que recebe energia da hidrelétrica de Belo Monte. As panes provocaram efeito cascata. O Esquema Regional de Alívio de Carga (Erac), usado como proteção, cortou o fornecimento para evitar sobrecarga e maiores danos aos equipamentos.

O apagão afetou, em maior ou menor escala, 26 das 27 unidades da Federação (apenas Roraima, desconectada da rede nacional, não foi atingido). Quase 15% da população — 29 milhões — ficaram sem luz nalgum momento entre 8h31 e 14h49, quando a energia foi restabelecida por completo. Até agora, não há explicação convincente. “Não é normal levar esse tempo todo para dar uma explicação”, afirma Edvaldo Santana, ex-diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). “O Operador Nacional do Sistema (ONS) sabe em tempo real onde ocorreu a falha. Chamou a atenção na entrevista do ministro não haver ninguém do ONS.”

Enquanto a oposição aproveita o apagão para criticar a gestão do setor elétrico pelo governo, o Planalto minimiza o episódio. Em contraste com outros apagões, os reservatórios hoje estão cheios, existe oferta de energia e não há excesso de demanda. Mas fatos raros acontecem. Por isso mesmo, o governo tem obrigação de explicar o que aconteceu, por que aconteceu e dizer o que fará para evitar que se repita. Não dá para politizar uma questão essencialmente técnica nem tratar problema de tamanha gravidade de forma tão rasteira.

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Um apagão de explicações

Editorial, O Estado de S. Paulo, 17/8/2023

Uma falha no sistema de energia provocou um blecaute de proporções gigantescas na última terça-feira. Todos os Estados do País foram afetados, com exceção de Roraima, o único fora do sistema interligado nacional. A pane começou às 8h31; o restabelecimento de energia começou a voltar de forma gradativa às 9h16, mas algumas localidades no Norte e Nordeste levaram mais de seis horas para ter o atendimento plenamente recomposto.

Como todo apagão, o episódio gerou um transtorno e tanto em escolas, hospitais, indústrias e no sistema de transporte público. Suas causas ainda serão devidamente esclarecidas pelos órgãos técnicos do setor. Até ontem, já se sabia que houve sobrecarga de energia no Ceará, mas não era de conhecimento público o município onde o incidente teria ocorrido nem a empresa responsável pelas instalações. Havia indícios de que outro evento, concomitante ao inicial, pudesse ter acontecido no sistema de transmissão no Norte do País – falha sobre a qual havia ainda menos informações oficiais.

Isso, por si só, causa estranheza, uma vez que o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) detém tecnologia suficiente para identificar a origem dos distúrbios rapidamente. Assim foi feito em todos os blecautes anteriores: mesmo sem saberem a razão pela qual um equipamento não funcionou da forma como deveria, as autoridades do governo sempre divulgaram, horas após a ocorrência, as informações sobre as quais já havia alguma certeza, como o local em que se originou o problema.

A falta de transparência criou um ambiente perfeito para a profusão de oportunistas, que atribuíram o incidente a causas que vão do aumento da presença de fontes renováveis e intermitentes na carga a uma alegada falta de segurança no sistema elétrico. Por trás dessas explicações costuma haver interesses implícitos, como o lobby das termoelétricas e a defesa da regionalização do sistema, revertendo tendências e diretrizes que corretamente nortearam a expansão do setor desde o racionamento de 2001.

Ao pior papel, no entanto, prestou-se o próprio governo. Em vez de tratar o caso com a prudência recomendada, o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, transformou o apagão em um episódio político. No lugar de dar espaço para explicações de técnicos do ONS, da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e do próprio Ministério, Silveira monopolizou uma longa entrevista coletiva sem esclarecer o que de fato teria causado o blecaute.

Sem atribuir responsabilidade pelo blecaute a nenhuma empresa em particular, o ministro aproveitou o momento para criticar a privatização da Eletrobras, insinuando que a desestatização da empresa teria comprometido a segurança do sistema elétrico. Sugeriu ainda a hipótese de ter havido sabotagem e solicitou a participação da Polícia Federal e da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) nas investigações antes mesmo da conclusão das apurações técnicas.

Além de não apresentar explicações convincentes para a sociedade, o ministro perdeu uma excelente oportunidade para demonstrar liderança no enfrentamento de uma crise. Em uma inusitada inversão de papéis, tal espaço foi ocupado pelo ministro da Casa Civil, Rui Costa, que atribuiu o blecaute a um erro técnico e assegurou haver sobra de energia para abastecer o País.

Pouco importa que um apagão seja explorado politicamente pela primeira-dama, por deputados petistas ou por parlamentares da oposição. Para o caso em particular, as opiniões desses atores são absolutamente irrelevantes. Porém, pela autoridade do cargo que ocupa, é inaceitável que o ministro aja da mesma forma.

Horas após a patética entrevista de Silveira, o diretor-geral do ONS, Luiz Carlos Ciocchi, disse que o órgão deverá divulgar informações mais precisas sobre o blecaute ainda nesta semana. Já o Relatório de Análise de Perturbação (RAP), que trará uma avaliação mais completa sobre as causas do incidente, levará um mês para ser concluído. Que os trabalhos do ONS sejam pautados com rigor, seriedade e transparência. É o que a sociedade merece depois de tantos palpites desencontrados e declarações levianas.

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Politização indevida

Por Merval Pereira, O Globo, 17/8/2023

A novidade de mais um apagão de alcance nacional é a politização do caso. Politização em sentido estrito, aproveitamento do fato para falar contra a privatização da Eletrobras ou em hipótese de sabotagem. Nos eventos anteriores, os governos do momento sofreram críticas e certamente ficaram fragilizados politicamente.

Mesmo quando, no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, para não haver apagão, montou-se uma força-tarefa para organizar um racionamento do uso da energia, com estímulos à redução de consumo, o governo sofreu muito desgaste. Fala-se até hoje no “apagão” que não aconteceu, por falta de água nos reservatórios das hidrelétricas.

No final do governo Bolsonaro, os reservatórios das hidrelétricas ficaram praticamente vazios devido à grande seca. Houve o temor de que um apagão pudesse paralisar a economia do país, colocando por terra o desejo de Bolsonaro de se reeleger. Passou-se por essa ameaça, e hoje os reservatórios estão mais cheios do que nunca. Mas, desta vez, acusa-se a privatização da Eletrobras, sugere-se uma possibilidade de sabotagem, sem que haja indício suficiente para tal.

A privatização da Eletrobras, que o governo Lula tentou sem sucesso reverter, foi acusada pelos petistas, a começar pela primeira-dama Janja da Silva, de responsável pelo maior apagão já ocorrido no país desde 2009. Janja, que já trabalhou em Itaipu, deu início à onda de críticas num tuíte atribuindo indiretamente o problema do apagão à privatização da Eletrobras — e foi seguida por diversos petistas. É uma maneira de tentar novamente reverter o que está feito — e em que o Congresso já disse que não voltará atrás.

É um ponto delicado na relação atual, conturbada, entre a Câmara e o Executivo. O presidente da Câmara, deputado Arthur Lira, irritou-se com a tentativa do governo de invalidar a privatização, e com razão. Hoje, às voltas com uma crise de relacionamento com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que acusou a Câmara de ter muito poder, mexer nesse vespeiro não é aconselhável. Está em jogo a aprovação do arcabouço fiscal.

Quanto ao apagão, não há nada que mostre que a privatização foi a causa, mesmo porque já tivemos outros apagões no país inteiro. Só existiria uma maneira de a Eletrobras ser responsabilizada, e não há nada que a comprove até o momento: os controladores privados não terem feito os investimentos necessários. Mas a privatização aconteceu há menos de um ano, e não é possível cobrar resultado imediato.

Mais grave foi a insinuação do ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, que soltou a suspeita de ter havido sabotagem e pediu investigação da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e da Polícia Federal. Também o ministro da Justiça, Flávio Dino, foi nessa direção. Se aconteceu, é gravíssimo. O pior é que não é nem descabido imaginar que possa ter acontecido coisa do tipo, pois não tentaram sabotar redes de transmissão e o aeroporto de Brasília com uma bomba?

Mas é meio precipitado o governo sair com isso. O chefe da Casa Civil, ministro Rui Costa, tentou recolocar as coisas no lugar, afirmando que esperaria a resposta técnica para depois investigar outras possibilidades. Até agora, mais de 48 horas depois, não houve essa explicação técnica. Nos outros apagões, nunca se pensou em sabotagem. Discutiram-se as falhas de sistema, a necessidade das térmicas, incluídas no projeto nacional de energia com as fontes de energia renováveis, como a eólica e a solar. Como temos histórico de apagões, é improvável que seja sabotagem. Mas é preciso surgir uma explicação técnica plausível, para que não se dê margem a teorias da conspiração também plausíveis nestes tempos em que vivemos.

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Um blecaute e uma cortina de fumaça

Por Malu Gaspar, O Globo, 17/8/2023

Na manhã da terça-feira, 29 milhões de brasileiros de todos os estados, com exceção de Roraima, sentiram os efeitos do desligamento repentino no fornecimento de energia. De uma hora para outra, celulares pararam de funcionar, metrôs desaceleraram, milhares de geradores foram acionados, e muita gente não pôde ir trabalhar.

Da última vez que houve um abalo parecido, em 2009, o presidente também era Lula. O então ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, primeiro atribuiu o blecaute a raios e ventos que haviam derrubado três circuitos ligados à Usina de Itaipu na região de Itaberá, em São Paulo, e a investigação do Operador Nacional do Sistema (ONS) demonstrou ainda que houve um curto-circuito numa subestação de Furnas.

Na época, a então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, admitiu que o Brasil não estava livre de blecautes, mas passou parte da entrevista reforçando que o país viera do racionamento em 2001, na gestão de Fernando Henrique Cardoso: “Uma coisa é blecaute. O que nós prometemos é que não terá nesse país mais racionamento. Racionamento é barbeiragem”.

Desta vez, o bode expiatório foi a privatização da Eletrobras. A primeira-dama, Janja, puxou o cordão:

“A Eletrobras foi privatizada em 2022. Era só esse o tuíte”, postou.

Deputados e senadores da base governista foram na mesma toada, sugerindo que o “crime” da privatização levou à queda nos investimentos da companhia — e que essa era a causa do apagão.

No final do dia, o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, deu uma entrevista de mais de uma hora em que passou a maior parte do tempo criticando a privatização da Eletrobras, ainda que a pergunta fosse noutra direção.

Mesmo afirmando que o sistema elétrico era robusto e bem planejado, Silveira disse que o fato de a Eletrobras ser privada gerava “instabilidade” no sistema, afirmou que a privatização fez muito mal ao país e se queixou de falta de “sinergia” entre a empresa e o governo.

Como exemplo dessa falta de sinergia, citou o fato de a troca do presidente da companhia, na noite anterior, não ter sido comunicada previamente a ele.

Depois de dizer que havia convocado a PF e a Abin para investigar o caso, embolou numa explicação confusa para a suspeita de sabotagem fatores que iam dos ataques às torres de energia que precederam o 8 de Janeiro à importância estratégica do sistema para o Brasil — passando, claro, pela privatização.

Enquanto isso, nos corredores dos ministérios, circulava aos cochichos uma teoria da conspiração bem ao estilo bolsonarista, segundo a qual o CEO demissionário da Eletrobras poderia ter arquitetado, como vingança, um golpe para derrubar o sistema.

Ao final, o ministro ainda disse que não seria “leviano de afirmar que a causa foi a privatização”. Mas foi exatamente esse o recado na entrevista que teve de tudo, menos uma explicação consistente para o apagão em si. Espera-se que ela venha nesta quinta-feira, num relatório elaborado pelos técnicos do Operador Nacional do Sistema (ONS).

Já está bem claro, e o próprio Silveira admitiu na entrevista, que falhas numa única linha de transmissão, seja da Eletrobras ou de qualquer outra empresa, não tinham como derrubar parte tão grande do sistema elétrico nacional. Pode-se até abominar a privatização, mas o próprio governo informa que não há, por ora, nenhuma relação entre ela e o apagão.

Na mesma manhã do blecaute, a Petrobras promoveu o primeiro aumento no preço dos combustíveis deste governo Lula — de 16,3% na gasolina, que voltou aos patamares da gestão Bolsonaro, e de 25,8% no diesel.

A Petrobras é controlada pelo governo, mas sobre isso ninguém fez perguntas na entrevista, nem o ministro Silveira fez questão de dizer palavra. Nenhum petista relevante foi às redes sociais protestar contra o aumento, e na agenda do presidente Lula o dia passou como se nada estivesse acontecendo nas bombas dos postos de abastecimento.

A estratégia de criar cortinas de fumaça para empurrar a adversários a responsabilidade por problemas com grande potencial de dano político é manjada. Mas o truque não dura para sempre. Eventuais aumentos no preço dos combustíveis continuarão desafiando a retórica governista e tendo impacto na inflação.

17/8/2023

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