A vassalagem de Toffoli (2)

A regra é de uma clareza cristalina, e vale em qualquer sociedade civilizada: juiz não julga causa de interesse de alguém de sua família, de seu círculo íntimo. Quanto mais, é claro, causa em que ele próprio esteja envolvido.

Se houver esse tipo de envolvimento, o juiz tem que se declarar impedido.

É um impedimento – o mesmo termo usado no futebol. Se, na hora do chute ou da cabeçada a gol, um jogador está à frente de seus adversários, está impedido.

A regra é clara, todo mundo entende.

Se o jogador está à frente de seus adversários, está impedido. Se o juiz tem parentes interessados no processo, ou, na hipótese mais absurda ainda de ele próprio estar envolvido no processo, está impedido.

O ministro Dias Toffoli está diretamente envolvido nos processos da Lava-Jato que, monocraticamente, irracionalmente, insanamente anulou na semana passada. E não apenas porque ele trabalhou durante anos para o PT e para as campanhas de Lula, porque foi nomeado para a Advocacia Geral da União por Lula e depois para o STF por Lula.

Mas também porque ele é citado nos processos da Lava-Jato. Citado com todos as letras de seu nome completo, por extenso, José Antonio Dias Toffoli.

Confesso que não me lembrava disso quando, na sexta-feira passada, 8/9, publiquei aqui um post com o título “A vassalagem de Toffoli”, em que compilava dois textos importantíssimos sobre a decisão do ministro – o editorial da Folha de S. Paulo “Corrupção estimulada” e o artigo de Malu Gaspar “O perdão de Toffoli”. (Malu Gaspar entende muito do assunto: é a autora do livro A Organização: a Odebrecht e o esquema de corrupção que chocou o mundo.)

Quem lembrou que Toffoli estava em claríssima posição de impedimento foi o jornalista e editor Carlos Andreazza, em artigo no Globo desta terça-feira, 12/9:

“Em 13 de julho de 2007, Marcelo Odebrecht enviou e-mail a executivos da companhia:

— Afinal vocês fecharam com o amigo do amigo do meu pai?

Resposta de Adriano Maia:

— Em curso.

Em 9 de abril de 2019, Odebrecht apresentou esclarecimentos sobre mensagens que entregara para substanciar sua colaboração. A Polícia Federal queria saber quem era “o amigo do amigo do meu pai”. O empresário elucidou:

— Refere-se a tratativas que Adriano Maia tinha com a AGU sobre temas envolvendo as hidrelétricas do rio Madeira. ‘Amigo do amigo do meu pai’ se refere a José Antonio Dias Toffoli.”

O artigo precioso, preciso, imprescindível de Carlos Andreazza me levou a fazer esta segunda compilação sobre o assunto.

Porque é preciso não esquecer jamais as verdades dos fatos, para não cair na desinformação, nas “narrativas” dos corruptos ou protetores dos corruptos e corruptores, na “realidade alternativa” defendida na prodigiosa sentença de Toffoli da semana passada.

Porque, afinal, fatos são fatos – eles não variam ao gosto do freguês. Editorial do Estado de S. Paulo desta quarta-feira, 13/9, tem exatamente o título de “Fatos ao gosto do freguês”, e a linha fina abaixo do título, o que no jargão jornalístico chamamos de olhinho, é um resumo perfeito dos fatos:

“Está em curso um movimento que, antes de buscar aprimorar as instituições, se presta a apagar da História as evidências do maior esquema de corrupção de que se tem notícia no País.”

O editorial pede que o Tribunal de Contas da União não faça pouco-caso da memória de muitos brasileiros. E que “não se preste a fingir que os fatos não são fatos, isto é, que o envolvimento de um punhado de empreiteiras com o maior esquema de corrupção de que se tem notícia no País simplesmente não existiu”.

Em artigo no Globo de sábado, 9/9, Carlos Alberto Sardenberg, com muita ironia, pergunta: “O que a Petrobras fará com os R$ 6,28 bilhões que recebeu de empresas e executivos, inclusive da própria estatal, a partir dos acordos de leniência firmados no âmbito da Operação Lava-Jato?” E em seguida responde, usando a expressão que Toffoli usou, em sua declaração de amor incondicional a Luiz Inácio Lula da Silva que é também um libelo pró-corrupção, : “Se foi tudo uma ‘armação’, se os pagamentos foram indevidos, a Petrobras tem de devolver esses bilhões.

Aqui vão as íntegras dos dois artigos e do editorial. Se registrar aqui textos que mostrem a verdade dos fatos for parecido com dar murro em ponta de faca, não faz mal. Estou acostumado.

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Anistia para Dias Toffoli

Por Carlos Andreazza, O Globo, 12/9/2023

Este artigo é sobre a imprestabilidade de um juiz para julgar a prestabilidade de conjunto de provas em que está citado.

Em 13 de julho de 2007, Marcelo Odebrecht enviou e-mail a executivos da companhia:

— Afinal vocês fecharam com o amigo do amigo do meu pai?

Resposta de Adriano Maia:

— Em curso.

Em 9 de abril de 2019, Odebrecht apresentou esclarecimentos sobre mensagens que entregara para substanciar sua colaboração. A Polícia Federal queria saber quem era “o amigo do amigo do meu pai”. O empresário elucidou:

— Refere-se a tratativas que Adriano Maia tinha com a AGU sobre temas envolvendo as hidrelétricas do rio Madeira. ‘Amigo do amigo do meu pai’ se refere a José Antonio Dias Toffoli.

AGU é Advocacia-Geral da União, então comandada por Dias Toffoli, época em que a Odebrecht tentava vencer — e venceria — a disputa pela construção da usina de Santo Antônio, no Madeira. Marcelo Odebrecht acrescentaria que a “natureza e o conteúdo das tratativas” só poderiam “ser devidamente esclarecidos por Adriano Maia, que as conduziu”.

Nunca houve novos esclarecimentos — jamais se soube o que estaria “em curso”, idem o significado daquele “fecharam” do “fecharam com o amigo do amigo do meu pai?” — nem há referências a pagamentos etc. associados ao codinome do ora ministro do STF. Mas, se não é possível, apenas com base na menção a Dias Toffoli, afirmar que havia algo de ilegal nas relações com a construtora, é seguro dizer que a alusão deveria bastar para que se declarasse impedido de apreciar o caso.

Se a questão fundamental é a defesa do devido processo legal, tão atacado pela corrupção de meios da Lava-Jato, fundamental deveria ser o impedimento do ministro para cuidar de tudo quanto se referisse à Odebrecht nos escombros da operação. Em vez disso, esteve bem à vontade, agudo o faro das oportunidades, para decretar a nulidade de todas as provas derivadas do acordo de leniência da empreiteira — inclusive a porção que o cita.

Só mesmo o ímpeto por vingança, que acomoda os abusos de poder, somado ao triunfo do vício monocrático, com que juízes da Corte constitucional dissimulam autoritarismos para gerir assuntos pessoais, explica que Dias Toffoli faça o que fez se arvorando ainda em guardião do Estado de Direito.

Ele terá evoluído; sofisticado o estilo. O conjunto colhido pela Lava-Jato seria produto, segundo o ministro, do “pau de arara do século XXI”, mesmo que nenhum Odebrecht parecesse seviciado ao falar. Delataram — e acordaram as leniências — assistidos pelas melhores bancas do país.

(Se a forma do acordo do Estado com graúdos da empresa foi exercício de tortura, como se deveria nomear o que se aflige aos pobres presos preventivamente Brasil afora, presídios adentro? Caberia também perguntar se consistiriam flagelação os modos empregados para acertar a delação de Mauro Cid, posto em liberdade provisória tão logo homologada sua colaboração; hein?)

Dias Toffoli progrediu. Avançou da condição de censor da atividade jornalística à — raríssima — de juiz responsável pela garantia da higidez do devido processo legal depois de haver anulado a validade de provas que o mencionam.

Falei em censura. Em Dias Toffoli censor. É impreciso. Ele terceirizou o ato, preciso sendo que havia muito a cadeia de amizades o incomodava. Marcelo Odebrecht contara quem era “o amigo do amigo do meu pai” em 9 de abril de 2019. No dia 11, a Crusoé publicou reportagem a respeito. No dia 15, a revista foi censurada, obrigada a tirar a matéria do ar.

Barbaridade inicial do onipresente, onisciente e eterno inquérito das Fake News, criado por Dias Toffoli em março daquele ano — sob o argumento de defender a honra dos ministros do Supremo — e dado para a gestão de Alexandre de Moraes, donde a censura terceirizada. Moraes censurou.

A censura mobilizaria a reação da sociedade e logo cairia. A reportagem da Crusoé está aí, para quem quiser ler. Mais uma razão para que se rechacem os desejos por tornar peças secretas canetadas como a de Dias Toffoli.

A censura caiu. A reportagem está disponível. Dias Toffoli é, segundo Marcelo Odebrecht, “o amigo do amigo do meu pai”. É. Ao mesmo tempo, era. Já era; porque doravante vige a imprestabilidade do esclarecimento, a esterilidade da apuração, impossíveis quaisquer elucidações sobre tratativas e fechamentos. “Segundo Marcelo” não existe mais — decidiu Dias Toffoli.

O “pai” (de Marcelo) é Emílio, amigo de Lula — amigo de Dias Toffoli. Era. Dias Toffoli era amigo de Lula. E continua não sendo; o ministro militando, em maiúsculas, para refazer os laços com o (de novo) presidente e turma.

Não lhe falta coragem; de maneira que vai urgente, por favor, que Lula responda ao zap e perdoe —anistie — o ministro.

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Fatos ao gosto do freguês

Está em curso um movimento que, antes de buscar aprimorar as instituições, se presta a apagar da História as evidências do maior esquema de corrupção de que se tem notícia no País

Editorial, O Estado de S. Paulo, 13/9/2023

Ao julgar “imprestáveis” todas as provas obtidas a partir do acordo de leniência firmado pela Odebrecht no âmbito da Operação Lava Jato, o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), parece ter dado o impulso que faltava para uma onda revisionista que já se prenunciava desde o início do ano no País. Antes fosse um movimento voltado ao aprimoramento das instituições e dos processos de combate à corrupção, maculados pela atuação enviesada, para dizer o mínimo, de alguns membros do Poder Judiciário e do Ministério Público Federal. Na superfície, até pode ser isso. Mas, ao que tudo indica, trata-se antes de uma desabrida cruzada pela reacomodação dos fatos, como se a sociedade brasileira fosse composta integralmente por tolos ou indivíduos de memória curta.

Menos de 48 horas após a posse do presidente Lula da Silva, já estava claro que os acordos de leniência assinados por empreiteiras que ganharam muito dinheiro durante gestões petistas por meio de contratos eivados de vícios haviam entrado na alça de mira do novo governo e do Tribunal de Contas da União (TCU). Basta lembrar que o ministro Rui Costa, enquanto ainda acomodava seus pertences no gabinete da Casa Civil, defendera a contratação dessas empresas para “acelerar” obras públicas “sem depender do Orçamento”, sugerindo que as multas bilionárias decorrentes daqueles acordos poderiam ser substituídas por prestação de serviços. Por sua vez, o presidente do TCU, ministro Bruno Dantas, tornou-se um dos principais articuladores dessa “solução”, chamemos assim, para as obras paradas Brasil afora.

Nove meses se passaram e, pouquíssimos dias após o despacho de Dias Toffoli, por si só problemático por envolver o STF com uma névoa de parcialidade que se moveria de acordo com os ventos da política, foi a vez do subprocurador-geral do Ministério Público junto ao TCU, Lucas Furtado, pedir à Corte de Contas que sejam extintas as penalidades impostas às empreiteiras envolvidas em casos de corrupção. Considerando-se que provas obtidas por meios considerados ilegais não podem, evidentemente, servir para condenar pessoas físicas ou jurídicas, estar-se-ia diante de procedimento corriqueiro, não fosse o tom político do pedido do representante do parquet. À moda de Dias Toffoli, o pedido de anulação das sanções formulado por Lucas Furtado indica que há mais em jogo do que o saneamento dos erros processuais cometidos pelas autoridades na celebração dos acordos de leniência.

Segundo Lucas Furtado, a Lava Jato “acabou com a indústria da construção civil pesada”, além de ter instalado “um clima de terra arrasada” no Brasil. Nesse sentido, para o subprocurador-geral, reabilitar as empreiteiras que, por confissão de seus próprios representantes legais, ganharam rios de dinheiro pagando propina a agentes públicos, seria reparar um “erro histórico”. O subprocurador-geral junto ao TCU vai além: a Corte de Contas deveria, ainda, “calcular os danos causados ao erário pela Lava Jato e cobrar dos agentes responsáveis o débito acarretado à União”. Nada menos. Hipérboles podem funcionar muito bem em cima de palanques. Como membros do Poder Judiciário e do Ministério Público não disputam eleições, nem muito menos devem se ocupar de questões políticas no desempenho de suas atribuições constitucionais, suas manifestações públicas deveriam estar circunscritas à técnica da fundamentação jurídica.

Se o subprocurador-geral junto ao TCU entende que é o caso de reabilitar as empreiteiras consideradas inidôneas com base em provas anuladas pela Justiça, tornando-as aptas a contratar com a administração pública novamente, que defenda a posição do parquet sem aviltar a inteligência ou fazer pouco-caso da memória de muitos brasileiros. E que a Corte de Contas, ao se debruçar sobre o pedido, inclusive sobre a anulação das multas, não se preste a fingir que os fatos não são fatos, isto é, que o envolvimento de um punhado de empreiteiras com o maior esquema de corrupção de que se tem notícia no País simplesmente não existiu.

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 O que fazer com o dinheiro?

Por Carlos Alberto Sardenberg, O Globo, 9/9/2023

O que a Petrobras fará com os R$ 6,28 bilhões que recebeu de empresas e executivos, inclusive da própria estatal, a partir dos acordos de leniência firmados no âmbito da Operação Lava-Jato? Se foi tudo uma “armação”, se os pagamentos foram indevidos, a Petrobras tem de devolver esses bilhões.

Parte do dinheiro pago pela Odebrecht foi para o Departamento de Estado dos Estados Unidos e a Procuradoria-Geral da Suíça. Colaboraram nas investigações que chegaram ao famoso sistema Drousys, usado pelo setor de Operações Estruturadas da empresa para controlar os pagamentos de propina a autoridades e políticos.

Mas, se não aconteceu nada disso, os acionistas da Odebrecht têm o direito de reclamar de volta esse dinheiro enviado para os gringos.

A Petrobras teve de pagar indenizações a acionistas que negociavam seus papéis na Bolsa de Wall Street. Foi um acordo por meio do qual a estatal brasileira reconheceu a má gestão — ou, mais exatamente, a corrupção, o petrolão —, circunstância que, obviamente, influiu negativamente no valor de suas ações.

Mas, se foi “armação”, todas essas indenizações foram indevidas. E então, que órgão do governo brasileiro organizará as cobranças aqui e lá fora?

Ou vai ficar tudo por isso mesmo?

Ocorre que o ministro Dias Toffoli encaminhou outras providências. Determinou que todos os órgãos envolvidos nos acordos de leniência sejam alvo de investigação para apurar eventuais danos à União. É uma longa lista. Vai da Lava-Jato de Curitiba até a Advocacia-Geral da União, Ministério Público e mais — centenas de gestores.

Um deles está ali mesmo, ao lado de Toffoli, numa cadeira do Supremo. Trata-se de André Mendonça, ex-chefe da AGU. O órgão foi parte ativa nos acordos de leniência, como o próprio Mendonça confirmou e elogiou numa entrevista em abril de 2019. Disse ainda que a AGU continuava patrocinando outros acordos.

No total, os acordos de leniência levaram a pagamentos de R$ 25 bilhões a diversas empresas estatais e instâncias de governos estaduais e federal. Também há complicação no âmbito do Judiciário. Em 23 de abril de 2019, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu por unanimidade manter a condenação de Lula no caso do tríplex do Guarujá. O mesmo STJ permitira a prisão de Lula, em abril de 2018, com base no entendimento de que o réu poderia começar a cumprir a pena depois da condenação em segunda instância. E o plenário do STF, em 4 de abril daquele ano, negara habeas corpus que livraria Lula da prisão. A decisão foi apertada, 6 a 5, mas tomada pelo plenário. “Armação”?

A recente decisão de Dias Toffoli foi monocrática, assim como fora a de Edson Fachin, quando, em 8 de março de 2021, anulou todas as condenações de Lula na Lava-Jato. Argumentou que o processo deveria ter sido aberto em Brasília, e não em Curitiba — “descoberta” feita cinco anos depois da abertura do caso. A decisão foi confirmada pelo plenário do Supremo — o que denota um tipo de corporativismo. Você não mexe na minha sentença, eu não mexo na sua.

Depois disso, o então ministro Ricardo Lewandowski tomou várias decisões monocráticas anulando as delações da Odebrecht nos processos de Lula. Toffoli completou o serviço, anulando toda a delação. Então ficamos assim: um erro processual, primeiro, e uma sequência de decisões monocráticas, depois, determinaram que as delações foram irregulares, o que dispensa, nessa grande “armação”, a verificação das provas. Quer dizer: aqueles computadores e programas da Odebrecht não existem, foi tudo uma ilusão.

Tudo considerado, há uma conclusão que se pode tirar para preservar a democracia e a segurança jurídica. Como já sugeriu o advogado, jurista e ex-ministro da Justiça José Paulo Cavalcanti Filho, as decisões monocráticas deveriam ser simplesmente vetadas. Abolidas. Do jeito como está, não temos uma Corte, mas 11 capitanias que decidem cerca de 90% dos casos. Dá nisso.

Agora, quem quiser saber a história real, está no livro de Malu Gaspar “A organização: a Odebrecht e o esquema de corrupção que chocou o mundo”.

Suas Excelências deveriam ler.

13/9/2023

A Vassalagem de Toffili (1).

 

 

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