As lições do 11 de setembro chileno

Cinquenta anos depois do golpe de Pinochet, o Chile volta a ser um país dividido verticalmente. Como se a roda da História tivesse girado para trás, a extrema-direita faz uma releitura do trágico 11 de setembro de 1973, enaltecendo a figura d e Augusto Pinochet. Segundo sua versão, o ditador salvou o Chile de “uma ditadura marxista”. Na outra ponta a esquerda se nega a atender ao apelo do presidente Gabriel Boric de uma revisão crítica do governo da Unidade Popular liderado por Salvador Allende.

Não há consenso quanto a um “nunca mais”. As homenagens às vítimas de uma ditadura que assassinou 4 mil pessoas e provocou o exílio de 200 mil chilenos se deram em um Chile no qual a democracia, como valor, está em baixa. Hoje, 43% de sua população aceitaria um golpe, “dependendo da situação do país”, e quase 40% culpam Allende pela ação dos militares de 1973. O negacionismo da extrema-direita tem base de massas.

Nem mesmo foi possível uma declaração de todos os partidos afirmando o compromisso nacional com a democracia, como aconteceu quando dos 40 anos do golpe. Desta vez houve uma declaração do governo Boric e outra dos partidos de direita da Aliança Chile Vamos. A extrema-direita de José Antonio Kast não assinou nenhuma das duas, por ter uma posição mais radical na defesa do “legado” de Pinochet.

Entretanto, é inescapável extrair as lições da derrota da Unidade Popular por meio do gol pe acontecido no país de maior estabilidade democrática na América do Sul. Carlos Ominami, ex militante do Movimento Revolucionário, ex-ministro da Economia de Patrício Alwin e senador na transição democrática, enfrentou esse desafio sem cair no maniqueísmo:

“É certo que aqui ninguém está livre de culpas. O ponto é que as responsabilidades são profundamente distintas. Há vítimas e culpados e por certo cúmplice passivos. Há uma diferença entre os graves erros do governo da Unidade Popular e os graves horrores que tiveram lugar na ditadura. Porém o anterior não exime de um juízo severo da esquerda. A maior responsabilidade foi tentar um processo de transformações profundas sem contar com uma maioria que a respaldasse”

Allende foi eleito com 36% dos votos e teve sua vitória confirmada pelo Congresso Nacional, como determinava a Constituição. Era um governo minoritário, sem o apoio majoritário dos chilenos ao seu programa de estatização dos meios de produção, particularmente em áreas estratégicas como a mineração e o sistema bancário.

Havia uma contradição entre a intenção de Allende de implantar o socialismo observando o Estado de Direito Democrático e seu programa de socialização da economia. Até hoje, um programa tão radical só foi implantado por meio de revoluções e não pela via do voto. Quando a Unidade Popular conseguiu quase 50% dos votos na eleição municipal de 1971, seu governo entendeu como um aval ao seu programa. Um ano depois esse apoio já tinha caído para 40% da população. Quase a mesma percentagem de quando se elegeu.

A correlação de forças recomendava que a Unidade Popular deveria buscar uma aliança mais ampla. Segundo o ex-senador Ominami, “a esquerda deveria pactuar com o centro. Allende deveria pactuar com Tomic (Rodomiro Tomic, candidato da Democracia Cristã derrotado na eleição de Allende).” Existia a possibilidade de acordar um programa de transformações profundas. No entanto, prevaleceu o sectarismo e uma grande falta de lucidez, incluindo os comunistas. ‘Com Tomic nem a missa’, dizia Luiz Corvalán, então secretário geral do PC chileno.

Refletindo sobre a experiência chilena, Enrico Berlinguer, secretário-geral do Partido Comunista Italiano, formulou sua estratégia de “compromisso histórico”. Nela alertava para a importância de não se dividir o país de forma vertical, de se evitar a formação de um bloco do centro com a extrema-direita e de que não bastava ter 50% para implementar um programa de profundas reformas. Era necessário formar um governo de uma ampla maioria.

Espremido pelas contradições internas da Unidade Popular e sendo minoritário até mesmo no Partido Socialista que o pressionava para adotar uma estratégia mais radical, Allende cometeu os erros analisados por Berlinguer posteriormente. A “via chilena para o socialismo” se aproximava, do ponto de vista econômico, mais do modelo cubano, embora tentasse implantá-lo pela via democrática. Nesse sentido, se diferenciava do modelo cubano da revolução pelas armas.

Capítulo à parte dessa tragédia foi a visita de Fidel Castro ao Chile, em novembro de 1971, absolutamente fora dos padrões diplomáticos. Fidel estendeu sua visita por 24 dias, percorrendo o país de norte ao sul, discursando em comícios, universidades, sindicatos e reunindo-se com organizações e partidos políticos de esquerda. Como notou o historiador chileno J. Fermandois, “com suas palavras e atitudes [Castro] punha expressamente em julgamento o sistema político chileno, atacava suas instituições e representantes e contribuía para acirrar os ânimos (…) Castro passou a se comportar como um ator político da vida nacional”.

Suas palavras eram a própria negação da via democrática de Allende: “Ninguém pense que viemos aprender algumas das coisas que nos aconselhavam alguns ‘libelucho’ ou alguns sisudos defensores das teorias políticas reacionárias, que achavam bom que viéssemos para aprender sobre eleições, sobre parlamento, sobre liberdade de imprensa, etc…(…) Não viemos aqui para aprender coisas caducas da história.”

Tensionava, assim, o governo Allende e passava a mensagem de que a “revolução chilena” era parte da revolução latino-americana, da qual a revolução cubana era um ícone. A partir de sua visita, a direita passou a disputar as ruas com a marcha das panelas vazias, e as ruas de Santiago se transformaram em palco de batalha campal entre a esquerda e a direita.

Estava pavimentado o caminho para o golpe de Pinochet, com uma base social de massas para uma ditadura sanguinária e longeva. A reconciliação dos chilenos parecia ter sido alcançada pelo período virtuoso dos governos da Concertacion Democrática, mas novos ventos desestabilizadores percorrem os Andes desde o estalido social de 2019. Mais do que nunca se impõe, como propõe Boric, extrair as lições da História para que o pinochetismo não volte ao poder, dessa vez pela via democrática.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 13/9/2023. 

 

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