O curto-circuito na relação entre Jair Bolsonaro e Tarcísio de Freitas expressa um dilema mais de fundo. A direita brasileira está diante do impasse de decidir entre dois caminhos para tentar pousar no Palácio do Planalto em 2026. Ou segue o plano de voo traçado por Bolsonaro, ou adota uma estratégia mais moderada, acenando para o centro e, assim, conseguir acumular forças, ampliando seu arco de alianças.
A despeito de 2023 ter sido um ano para Bolsonaro esquecer, o ex-presidente se mantém irredutível na sua estratégia de apostar na cristalização da polarização, que tenderia a se reproduzir na próxima disputa presidencial. Por isso, preconiza uma oposição sem quartel ao governo Lula. Vem daí sua afirmação de que Tarcísio “dá suas derrapadas” e a relação entre os dois “não anda bem”.
O ex-presidente tem adotado uma postura diante do governador paulista de morde e assopra. O elogia como “um baita administrador”, mas ao mesmo tempo ressalva que “jamais faria certas coisas que ele fez com a esquerda”.
Por “essas coisas” entenda-se o apoio de Tarcísio à Reforma Tributária e elogios a Fernando Haddad. Bolsonaro ficou abespinhado com o governador, por ter dito que o ministro da Fazenda mudou para melhor. No rol de suas insatisfações está o apoio do governador paulista à candidatura do atual prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, que disputará a reeleição no próximo ano. O ex-presidente defende uma candidatura puro sangue do bolsonarismo, para a disputa da prefeitura de São Paulo, a principal do país.
A linha de tensionamento permanente e de radicalização atende ao núcleo duro do bolsonarismo. Diga-se, de passagem, esse núcleo tem seus queixumes em relação ao governador de São Paulo. Principalmente por não ter montado uma equipe com perfil bolsonarista. Hoje apenas duas secretarias – a de Segurança e a de Políticas para Mulheres – são comandadas por bolsonaristas raiz. Por detrás do verniz ideológico das reclamações esconde-se o velho fisiologismo de abocanhar, cada vez mais, nacos da máquina pública.
A questão é saber se essa estratégia é capaz de retirar o bolsonarismo do canto do ringue. Em primeiro lugar, Bolsonaro está inelegível por ter sido condenado na instância máxima da Justiça Eleitoral. Desde o fracasso do 8 de Janeiro, o bolsonarismo vive seu inferno astral, com a prisão em massa e condenação de participantes da sua intentona. E dá sinais de ter perdido o protagonismo nas ruas. Prova disso foram os fiascos dos atos de 7 de Setembro, 12 de Outubro e 15 de Novembro, com as ruas praticamente vazias. Nada parecido com um ano antes, quando o bolsonarismo enchia as ruas de verde e amarelo.
A vitória de Javier Milei na Argentina pode ter dado gás ao bolsonarismo. Mas não interrompe seu esvaziamento. Nessas circunstâncias, lançar candidaturas a prefeitos em cidades estratégicas como São Paulo apenas para marcar posição ou para defender o “legado” de Bolsonaro é namorar com a derrota. Além do mais, as expectativas do ex-presidente de reverter na Justiça Eleitoral sua inelegibilidade é um sonho praticamente impossível.
A alternativa é a estratégia esboçada por Tarcísio Freitas, cujo horizonte é de longo prazo. No médio prazo, visa sua reeleição em 2026 e quatro anos depois disputar a presidência, como traçou seu competente enxadrista Gilberto Kassab. Claro que a política é dinâmica e esse calendário pode ser encurtado se o cavalo encilhado da disputa presidencial passar em frente ao Palácio dos Bandeirantes. Mas a rota está decidida, salvo chuva, tempestade ou trovoada.
Para alcançar o objetivo final, Tarcísio precisa realizar um bom governo, capaz de cacifá-lo para se reeleger. Isso implica em manter uma relação republicana com o governo Lula, descartando posturas como a de ser o “PSOL da Direita”, como queria Bolsonaro na votação da Reforma Tributária.
Tarcísio não vai romper com Bolsonaro e fará sempre acenos, como hospedá-lo no Palácio dos Bandeirantes. Bem como fará gestos para a base ideológica. Aliás tem feito isso, quando anistiou as multas da pandemia ou quando homenageou Erasmo Dias, uma figura que remete aos anos de chumbo dos tempos da ditadura.
Resta perguntar: e Bolsonaro, romperá com o governador de São Paulo? Difícil, muito difícil.
Uma coisa é certa. O governador manterá seu plano de voo. Inclusive para a disputa da prefeitura da capital paulista. Está convencido de que uma candidatura “puro sangue”, tipo a de Ricardo Salles, levará a uma derrota fragorosa, podendo facilitar a vitória da esquerda, via Guilherme Boulos. É isso. Tarcísio não polemiza publicamente com seu criador, mas fará o que acha que tem de ser feito.
Olhando para o horizonte de 2026, dificilmente a agenda ideológica terá o mesmo peso da última disputa presidencial. Isso vai requerer da direita ter um discurso voltado para a maioria dos brasileiros, no sentido de responder às suas necessidades. Dito em outras palavras, vai ter de se direcionar ao centro, se quiser ter viabilidade eleitoral, e não ficar confinada ao gueto ideológico ultrarradical.
A encruzilhada na qual se encontra tem prazo de validade. Já nas eleições municipais do próximo ano a direita terá de escolher qual dos dois caminhos vai seguir. Em algum momento vai ser cobrada para romper o cordão umbilical que a liga a Bolsonaro.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 22/11/2023.