Um voto de coragem

Em um domingo de outubro de 1963 realizava-se uma reunião sigilosa num apartamento de Ipanema da qual participavam oito dirigentes da Frente de Mobilização Popular e o então presidente João Goulart. Pauta do encontro: o pedido de Jango ao Congresso para decretar estado de sítio. Ao abrir a reunião, Leonel Brizola passa a palavra a um jovem de 21 anos para expressar a posição da FMP. “Presidente”, diz ele, “nós defendemos que o pedido de estado de sítio seja retirado. Ele fere garantias constitucionais.”

O jovem em questão era José Serra, então presidente da União Nacional dos Estudantes. Ali ele manifestava um dos traços de sua personalidade, presente ao longo de sua vida pública de mais de 60 anos: o respeito à legalidade e a observância aos preceitos constitucionais. Quem ler seu livro Cinquenta anos esta noite – o golpe, a ditadura, o exílio vai perceber outras marcas de sua trajetória política, como a coragem de navegar contra a maré, a obsessão pelos detalhes e de estudar um tema, exaustivamente, antes de tomar posição.

Na noite da última quinta-feira tais valores o levaram, mais uma vez, a fazer história, assim como já tinha feito como governador de São Paulo e ministro da Saúde, quando lançou os genéricos e criou o melhor programa do mundo de combate ao vírus da Aids. Estava em votação no Senado a PEC Kamikaze, que, a pretexto de ampliar o Auxílio Brasil para as camadas mais necessitadas, viola dispositivos constitucionais e a responsabilidade fiscal.

Com um agravante: a criação de um “estado de emergência nacional” para justificar a gastança de R$ 41 bilhões a três meses da eleição, o que é proibido pela lei eleitoral. Até as cadeiras do Senado sabem que a PEC visa a desequilibrar a balança da disputa presidencial. Mas, para evitar a pecha de ter votado contra os pobres, quase a unanimidade dos senadores votou favoravelmente à sua aprovação. Menos um: José Serra.

Quem o conhece mais de perto sabe que deve ter varado madrugada adentro estudando o tema ou consultando amigos, ex-colaboradores ou assessores até formar sua convicção. Não deve ter sido uma decisão fácil. Ele mesmo admitiu isso em entrevista à Folha de S.Paulo. Não por temor a um eventual desgaste em sua imagem pública. Muito menos foi um voto insensível à dramática situação dos milhões de brasileiros que passam fome. Ao contrário: ele entende como prioritária a superação, de uma forma sustentada, desse drama nacional.

Mas, como é do seu feitio, analisou todos os detalhes da PEC e constatou suas inconsistências, como a não definição de fontes de custeio e seus impactos econômicos e sociais mais à frente.  Convenceu-se de que ela geraria mais inflação e aumento de juros, afetando mais ainda o poder aquisitivo dos mais pobres.

Para Serra, havia um caminho mais racional para enfrentar o drama da fome: “seria perfeitamente possível obtermos recursos pelo processo legislativo usual, via projeto de lei, com recursos ordinários e extraordinários”.

Isso requereria outro ritmo que não o da aprovação de uma PEC a toque de caixa, sequer debatida na Comissão de Constituição e Justiça. Mas, como o governo tem pressa, devido à sua desvantagem na disputa eleitoral, optou-se por uma saída disruptiva do arcabouço fiscal.

Para usar as palavras do único senador destoante do coreto populista: “Ao permitir, subitamente, que bilhões sejam gastos para proporcionar vantagem eleitoral a governos e parlamentares de ocasião, estamos reforçando estímulos a condutas irresponsáveis”.

Dá para desconfiar da súbita preocupação do governo e parlamentares com o drama de quem vive na miséria. Há uma pergunta incômoda do paulista, lançada ao ar e para a qual não obteve resposta: “Só agora o Senado descobriu que as famílias passam fome?”

Poderíamos agregar outra questão crucial: como ficarão as pessoas beneficiárias quando o estado de emergência se encerrar, no fim do ano? Aí já não haverá mais eleição e a fome tenderá a sumir da agenda do Congresso, apesar de continuar atormentando a vida de milhões e milhões de pessoas.

Há quem considere o voto uma atitude quixotesca. De Dom Quixote, Serra não tem nada. O realismo político é uma marca na sua trajetória como homem público. Não tinha a menor ilusão de que seria acompanhado por seus pares. Até porque mesmo os senadores da oposição se renderam ao cretinismo eleitoral, votando contra suas convicções para não ficar mal na fita.

Não adianta, depois de ter contribuído para o desrespeito da Constituição, dar declarações dizendo que a PEC Kamikaze é eleitoreira. Isso cheira a farisaísmo. Talvez por isso, e como efeito da postura coerente de Serra, os partidos oposicionistas prometem endurecer o jogo na Câmara, exigindo ao menos que a matéria não seja aprovada sem debate.

Se não tinha ilusão quanto ao resultado da votação, o senador paulista quis demarcar terreno e preservar sua biografia. Plantou para o futuro, pensando na leitura que farão as próximas gerações de um episódio que desonra o Parlamento. Elas saberão que em meio a tanta pusilanimidade e oportunismo, houve um senador que votou pensando no país e não em seus interesses eleitorais.

Possivelmente seu voto enfureceu muitos de seus colegas senadores. Não faltará quem ache sua postura um mero ato de teimosia. Se for assim, bendita teimosia de José Serra, que dá exemplo de seriedade, de compromisso com a coisa pública e mostra que nem tudo está perdido.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 6/7/2022. 

 

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