Preâmbulo ao suelto sobre canções

De repente tocou aqui em casa uma música que me deixou estatelado, embriagado, embevecido diante de tanta beleza. Uma música antiga, que conheço há décadas.

Não que isso seja surpreendente, raro. De forma alguma. Acontece com alguma frequência. A Rádio Sérgio Vaz muitas vezes fica ligada quando a gente não está escrevendo ou lendo, quando estamos arrumando coisas pela casa, quando estou lavando louça, Mary preparando jantar – ou quando estamos simplesmente sentados na sala, conversando, jogando um joguinho.

Só toca música boa nessa rádio, mas às vezes acontece de aparecer uma canção que há muito tempo eu não ouvia, ou de que gosto especialmente, ou que me pega num momento em que estou mais atento, mais aberto, mais sensível.

Foi o caso hoje quando, no começo da tarde, tocou “Run Run Se Fué pa’l Norte” com o Inti-Illimani. Parei o que estava fazendo para ouvir – estatelado, embevecido.

Depois aconteceu de novo, com “All I Really Want to Do”, não a gravação de Dylan, mas a de Brian Ferry. Pela bilionésima vez na vida, me peguei encantado, embasbacado com o talento, a maestria com que Dylan manipula as rimas, como brinca com a sonoridade daquela quantidade incrível de verbos.

No jantar, baixei um pouco o som, mas deixei rolando, e aí, diabo, houve ainda uma terceira gravação que me deixou apatetado – “Canção que Morre No Ar”, com Sylvinha Telles.

Desde o início da tarde, desde “Run Run Se Fué pa’l Norte”, eu tinha pensado em escrever um suelto, um texto solto, despretensioso, à vontade, sobre a canção, sobre música de maneira ampla geral irrestrita, sobre o que fosse passando pela cabeça. Depois de repetir “Canção que Morre No Ar” três vezes, me ocorreu que fazer um suelto era quase uma obrigação… Um dever. O que é um oxímoro – se é obrigação, então não é suelto. Se é suelto, não pode ser obrigação. Mas isso aí já é meio brincadeira, e brincadeira, isso sim, é coisa de suelto.

***

A verdade é que gostaria de escrever mais coisas assim soltas, descompromissadas… Depois que me aposentei. passei a escrever quase obsessivamente, como se para me vingar dos 35, sei lá exatamente quantos anos que passei no jornalismo reescrevendo e acertando os textos dos outros. Tudo na minha vida virou texto, como sentenciou lá atrás a minha filha, com a sabedoria de quem sentencia com perfeito senso de justiça. Mas a vida, como os textos, escolhe os caminhos, independentemente do que a gente quer, deseja, traça, planeja – e então acabei virando, em boa parte, um prisioneiro da necessidade de escrever sobre filmes para o 50 Anos Deles.

Que não haja dúvidas: é uma delícia escrever sobre filmes. Adoro essa coisa de ter um site sobre filmes – idéia da Mary, arquitetura e engenharia do Carlos Bêla. Mas o fato é que é um perigo o lazer se tonar uma obrigação. Perde a graça. É como acontece com os ginecologistas na piada: os ginecologistas trabalham onde todo mundo se diverte.

É preciso que eu de vez em quando me dê umas broncas – além das que ouço da Mary – para lembrar que escrever sobre filmes é lazer, não obrigação.

Bem, acho que me desviei um pouco do assunto. Embora, diabo, suelto seja exatamente isso – um texto que não tem compromisso.

Pois é, ainda há os textos que faço pelo compromisso cívico, pelo compromisso de exercer a cidadania – os textos sobre política. A rigor, a rigor, eu não precisava entrar nessa seara; o + de 50 Anos de Textos tem os artigos de Mary Zaidan, diabo! Tem os de Hubert Alquéres. Vai voltar a ter os de Nelson Merlin e Luiz Carlos Toledo Pereira – que, por questões momentâneas, andam ausentes nas últimas semanas. Tem as crônicas bem-humoradas da Vera Vaia. Não precisaria de mais textos sobre política – mas o bobão aqui insiste em fazer as compilações de artigos importantes publicados nos grandes jornais, e fazer ao menos uma abertura para essas compilações – e isso toma um tempo danado.

E acaba não sobrando muito tempo para escrever sueltos. Sueltamente. Por puro prazer.

***

Diacho: saí por um momento aqui do escritório e passei pela sala pra ver se a Mary estava servida de cerveja, e Paul McCartney estava cantando “You Tell Me”, uma das canções mais emocionantemente belas de seus discos dos últimos 20 anos. Mas aí não parei para ouvir. Estou no meio de um suelto que teoricamente era para ser sobre três outras canções.

“Run Run Se Fué pa’l Norte”.

“All I Really Want to Do”.

“Canção que Morre No Ar”.

Mas a introdução até chegar às canções propriamente ditas ficou tão grande que não sei se é o caso de falar sobre elas aqui, ou começar um outro suelto.

Ninguém lê texto grande na internet, dizia o Robson, o sujeito que mais entendia de internet no estadao.com.br quando o Sandro Vaia e o Elói Gertel me levaram para ser o editor-chefe do portal. Mas isso é outra história – nem mesmo num suelto dá pra falar de tantos assuntos diferentes, e este texto aqui era para ser um suelto sobre as três canções.

Talvez eu pudesse dividir o suelto em alguns sueltitos…

E aí de repente me lembro de Historias de Cronopios y de Famas, que Julio Cortazar lançou em 1962. Havia uma primeira parte, “Manual de Instruções” – com manuais de instruções para chorar, para cantar, para entender pinturas. E havia especialmente um manual de instruções para dar corda no relógio – só que este precisava de um anterior, uma preparação, um “Preambulo a las Instrucciones para Dar Cuerda Al Reloj”.

Começa assim o preâmbulo – e, meu Deus do céu e também da Terra, como é possível que alguém escreva desgraçadamente, tão desesperadamente  bem?

“Piensa en esto: cuando te regalan un reloj te regalan un pequeño infierno florido, una cadena de rosas, un calabozo de aire. No te dan solamente el reloj, que los cumplas muy felices y esperamos que te dure porque es de buena marca, suizo con áncora de rubíes; no te regalan solamente ese menu do picapedrero que te atarás a la muñeca y pasearás contigo. Te regalan no lo saben, lo terrible es que no lo saben-, te regalan un nuevo pedazo frágil y precario de ti mismo, algo que es tuyo pero no es tu cuerpo, que hay que atar a tu cuerpo con su correa como un bracito desesperado colgándose de tu muñe ca. Te regalan la necesidad de darle cuerda todos los días, la obligación de darle cuerda para que siga siendo un reloj; te regalan la obsesión de atender a la hora exacta en las vitrinas de las joyerías”…

Pronto. Ferrou o meu suelto. Como posso pensar em escrever alguma coisa, depois desse néctar dos deuses que é o texto de Julio Cortazar?

Algum dia escrevo um Manual para Se Amar “Run Run Se Fué pa’l Norte e outras canções”.

3 e 5/9/2022

Um comentário para “Preâmbulo ao suelto sobre canções”

  1. Sem a menor dúvida esse é o mais espetacular, se é que sueltos podem ser isso, dos que você escreveu até hoje – ou pelo menos entre os que eu li. Ganhei a noite!

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