Aconteceu em 1994, na duríssima campanha ao governo de São Paulo. Durante uma entrevista, Mario Covas antecipou que, se eleito, não daria reajuste ao funcionalismo porque o Estado estava quebrado. Sua mulher, Lila, também não dourou pílulas. No debate reunindo esposas de candidatos, disse que aborto não era questão de opinião, mas de saúde pública e foro íntimo. Isso em meio à acirrada disputa com o “Segure na mão de Deus” Francisco Rossi. Covas manteve as posições durante a campanha e depois dela. Foi eleito e reeleito.
Mesmo considerando que políticos como Mario Covas são raríssimos, é desalentador ver o quão abaixo da média está a maioria, que, não raro, corre feito diabo da cruz de liderar um debate polêmico ou impopular. Muitos chegam a contrariar suas crenças para dizer o que seus staffs apontam que o eleitor quer ouvir. Mesmo que seja mentira. Lula é mais um que acaba de se emboscar nessa armadilha.
Com precisão no diagnóstico e firmeza no discurso, o ex-presidente trouxe à tona o tema aborto, cuja criminalização só afeta mulheres pobres, lançando-o no escopo da saúde pública, ao qual, corretamente, a questão pertence. Corajoso e elogiável em uma campanha em que o lado de lá diz defender o direito do nascituro sem demonstrar qualquer empatia com as mulheres, nem mesmo com as vítimas de estupro. Que fala em defesa da vida e prega a liberação de armas de fogo para todos.
Mas Lula voltou atrás no dito. Pode até ser que as pesquisas indiquem o quão inoportuno o tema é para os evangélicos e para a parte conservadora do eleitorado. Ao recuar, dizer que não disse o que disse, o petista se rende. Joga fora a chance de fazer a diferença. Afinal, um líder de fato não teme questões desconfortáveis, pois crê na importância de a sociedade discuti-las.
Essa acelerada e recorrente prática do ludibrio nas campanhas eleitorais talvez explique a penúria do debate político nos últimos tempos.
Candidatos são cada vez mais genéricos, evitando detalhar qualquer tema para evitar descontentamentos. Repetem mesmices como “a favor da educação”, “melhor distribuição de renda”, “mais emprego e melhores salários”, “pelo fim da inflação”, entre outras lenga-lengas. Têm profundidade de um pires até quando se agridem. A esquerda tacha fulano ou sicrano de fascista e neoliberal, como se o distinto público entendesse o significado dos termos, se são elogios ou xingamentos. Bolsonaristas ressuscitam o temor ao comunismo, assim, como bicho-papão.
Ninguém fala sério. Muito menos sobre temas sensíveis. E o país não anda. Quando anda, o faz para trás.
Bolsonaro, que em 2018 liderou o ranking da desfaçatez, venceu com a batida ideia do candidato anti-política, do intolerante com a corrupção, do liberal privatista. No governo, trouxe o Centrão de volta para a ribalta, deu de ombros para as estripulias do seu time, incluindo as com vacinas, e fez amém até para os “pastores da Educação”. A ordem liberal ficou só no gogó do ministro Paulo Guedes, rouco e sem voz.
O presidente e os seus até colocaram a pauta de costumes na roda. Só não avançaram no retrocesso pretendido porque a propalada (e não comprovada) maioria conservadora não deu trela para tal.
Talvez o país não seja tão reacionário quanto Bolsonaro gostaria. Ou, e isso é mais provável, essa agenda não fale alto para os que têm emergências maiores – desemprego e fome -, sendo só mais um instrumento de tergiversação do bolsonarismo.
Com a multiplicação de políticos que apostam nesse tipo de enganação, o Brasil adia decisões que o fariam melhor.
Nos costumes, não se trata apenas do aborto – questão superada ou em debate avançado em vários países do mundo, incluindo os latino-americanos Argentina, Colômbia e, mais recentemente, o Chile -, mas outros temas emergentes como a descriminalização da maconha e da eutanásia. Na economia, ninguém convoca o eleitor para debater saídas, explicar o significado de cada ação, suas consequências, perdas e ganhos no curto, médio e longo prazos. Nem mesmo se dão ao trabalho de vincular o dinheiro público e os gastos ao imposto que o cidadão paga.
“O povo prefere um ‘não’ discutido a um ‘sim’ que ele sabe que não será cumprido”, repetia Covas desde os tempos em que ocupou a Prefeitura da capital paulista (1983-85). Acreditava na política como instrumento de transformação. Na missão didática que tinha, no dever de explicar cada ato, cada centavo gasto. Na responsabilidade embutida nos votos recebidos.
Não deveria ser nada extraordinário, nem fora da curva. Hoje, o que vemos é o avesso disso: candidatos se transformam de acordo com a conveniência. Conseguem até liderar pesquisas de opinião e angariar votos, mas em nada avançam. São líderes sem causa.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 10/4/2022.