“Lula falou do aborto, e fez bem”

No meio da tarde, rola um debate na CBN sobre o aborto. Quando ligamos o rádio, numa saída de casa para resolver coisinhas e passar na padaria, já estava bem no fim, não deu para gravar o nome das entrevistadas, mas eram duas ou três, todas mulheres, e davam opiniões lógicas, sensatas, apoiadas em números, estatísticas, fatos. Foi na quinta-feira, 7 de abril.

Naquele mesmo dia, o aborto era tema de artigo de Merval Pereira na página 2 de O Globo e de matéria na página 6; não o tema principal, mas falava-se na questão. Na sexta, 8/4, lá estava o tema na mesma importante coluna da direita da página 2 de O Globo, assinada naquele dia por Vera Magalhães. Virava-se a página e o leitor se deparava com um artigo totalmente voltado para a questão do aborto – um artigo no mesmo tom das declarações que ouvi das entrevistadas pela CBN. Flávia Oliveira fala do aborto com lógica, sensatez, apoiada em números, estatísticas, fatos. Zero de paranóia, faniquito, histeria.

(A íntegra do belo artigo “Debate Interrompido” vai mais abaixo.)

A partir daí, o tema aborto – que este país tem a doente mania de não enfrentar de frente, de não debater, de não discutir – não parou mais de frequentar as páginas dos jornais. Posso imaginar que tenha sido assim também em várias emissoras de rádio.

Claro: muito do que foi dito é pura asneira, lixo que sai da boca dos políticos da extrema direita e de idiotas de uma maneira geral que o bolsonarismo conseguiu tirar das profundezas do esgoto.

Mas houve também – como comprovam o debate da quinta-feira na CBN e o artigo de Flávia Oliveira no Globo da sexta, entre outros – vozes conscientes, lúcidas, a respeito do tema que só a má-fé ou a ignorância, ou as duas coisas juntas, insistem em jogar para debaixo do tapete.

Tudo isso porque, na terça-feira, 5/4, Luiz Inácio Lula da Silva fez uma defesa do direito ao aborto.

No mundo político, foi um Deus-nos-acuda. Petistas de diversos matizes demonstraram estranheza, insatisfação diante da opinião do Supremo Comandante em Chefe: pô, isso tudo é verdade, mas não pode dizer… Tira votos…

Bolsonaristas do único matiz que existe – o da idiotice reacionária  babante – exultaram: oba, o Lula pisou no tomate! Oba, bora meter o pau no Lula!

O presidente da Academia Brasileira de Letras – cujo trabalho admiro há décadas – sujou seu fardão ao chamar a fala de Lula de “sincericídio”. “Outro sincericídio foi a defesa do direito ao aborto que ‘toda mulher deveria ter’”, escreveu Merval Pereira. “Há quem concorde, inclusive eu, mas com ressalvas que ele deveria ter colocado. Por exemplo ao aborto até seis meses de gestação, aprovado recentemente na Colômbia, inaceitável nos termos propostos. O feto já pode sobreviver fora do corpo da mãe àquela altura da gestação.”

Diacho, Merval, seria de se esperar um pouco mais de seriedade no trato de um assunto que provoca a cada ano mais de 200 mil internações de mulheres brasileiras devido a problemas ocasionados por abortos feitos sem as condições mínimas!

Vera Magalhães. uma das grandes jornalistas da área política em atuação  no país, desta vez pisou no tomate ao dizer que Lula defender o direito ao aborto foi como atravessar a rua voluntariamente para escorregar na casca de banana.

Em um gesto que parece dar razão a tanta crítica, Lula correu para dizer que não era bem assim, que é pessoalmente contra o aborto, que tem tantos filhos e tantos netos – como se o número de seus filhos e netos tivesse qualquer coisa a ver com o tema em questão, ou com qualquer outro tema.

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Em seu artigo no domingo, 10/4, no Blog do Noblat (e reproduzido neste site aqui), com o título “Líderes sem causa”, Mary Zaidan foi ao ponto certo na questão política dessa discussão: “É desalentador ver o quão abaixo da média está a maioria, que, não raro, corre feito diabo da cruz de liderar um debate polêmico ou impopular. Muitos chegam a contrariar suas crenças para dizer o que seus staffs apontam que o eleitor quer ouvir. Mesmo que seja mentira. Lula é mais um que acaba de se emboscar nessa armadilha.”

Depois de elogiar a fala de Lula da terça-feira – “Com precisão no diagnóstico e firmeza no discurso, o ex-presidente trouxe à tona o tema aborto, cuja criminalização só afeta mulheres pobres, lançando-o no escopo da saúde pública, ao qual, corretamente, a questão pertence” – e lamentar que ele tenha em seguida voltado atrás, Mary Zaidan escreveu:

“Candidatos são cada vez mais genéricos, evitando detalhar qualquer tema para evitar descontentamentos. Repetem mesmices como ‘a favor da educação’, ‘melhor distribuição de renda’, ‘mais emprego e melhores salários’, “pelo fim da inflação’, entre outras lenga-lengas. (…) Ninguém fala sério. Muito menos sobre temas sensíveis. E o país não anda. Quando anda, o faz para trás.”

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Ainda no domingo, Elio Gaspari dedicou o primeiro item de sua coluna publicada em O Globo e na Folha de S. Paulo a esse tema com a seriedade que ele merece e com um belo título, do qual vou me apropriar: “Lula falou do aborto, e fez bem”.

Eis o texto de Elio Gaspari

“O Curupira é um garoto de cabelos vermelhos com os pés voltados para trás. Vive no mato, e quem se aproxima dele perde a noção de rumo. Há um Brasil enfeitiçado pelo Curupira, e ele se mostrou com as reações a uma fala de Lula sobre o aborto.

“O ex-presidente disse o seguinte:

“’Aqui no Brasil não faz (aborto) porque é proibido, quando, na verdade, deveria ser transformado numa questão de saúde pública, e todo mundo ter direito e não ter vergonha. Eu não quero ter um filho, eu vou cuidar de não ter meu filho, vou discutir com meu parceiro. O que não dá é a lei exigir que ela precisa cuidar’.

Lula já se manifestou dezenas de vezes pessoalmente contra o aborto. Sua fala foi noutra direção, a do reconhecimento de que é um direito da mulher decidir interromper uma gravidez. Toda vez que a política brasileira é envenenada pela satanização desse assunto, uma coisa é certa: alguém chegou perto de um Curupira e está sem rumo.

O direito constitucional de as mulheres decidirem interromper a gravidez foi reconhecido pela Corte Suprema dos Estados Unidos em 1973. A decisão foi explicada no voto do juiz Harry Blackmun (republicano) e até hoje divide o país. Nações de maioria cristã como Itália, França, Argentina, Chile, Uruguai, Portugal e Espanha deram esse direito às mulheres; muita gente continua contra, mas os países não se dividiram. O que se discute é o direito. Só aborta quem quer, respeitando algumas limitações.

Em 1990, o jurista americano Laurence Tribe publicou um livro definitivo, cujo título dizia tudo: “Abortion, the clash of absolutes“ (“Aborto, o choque de absolutos”). Para ele, o nó da questão estava no choque de duas ideias, “o direito de um feto à vida e o direito de a mulher decidir o seu próprio destino”. Tribe mostrou que qualquer outra discussão é secundária e nenhum lado pode provar que tem razão. Esse é o debate civilizado. No Brasil, o Curupira envenena-o.

Oito anos depois da decisão da Corte americana o Brasil viu no filme Pixote o aborto de Marília Pêra com uma agulha de tricô. Hoje, o aborto se tornou uma questão de saúde pública pelos casos parecidos com os de Pixote e pelo progresso da medicina. Em 1973, o mesmo ano da decisão da Corte americana, surgiram pílulas abortíferas que hoje são vendidas nos camelódromos de cidades brasileiras. Estima-se que as internações anuais de mulheres por causa de complicações decorrentes do uso dessas drogas passam da casa dos 250 mil.

“É disso que se trata, pois o fármaco abortífero é usado como anticoncepcional de última instância. Às vezes, ele causa infertilidade, infecções, sangramentos e, em alguns casos, mata.

“Nunca será demais repetir o ensinamento de Mário Henrique Simonsen: o problema mais difícil do mundo, bem enunciado, um dia será resolvido. O problema mais fácil do mundo, mal enunciado, jamais será resolvido.”

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“Lula falou do aborto, e fez bem.”

Todas as pessoas que me conhecem, mesmo as que me conhecem muito pouco, só de ler um ou outro texto meu no Facebook, sabe que não tenho qualquer apreço por Luiz Inácio Lula da Silva. Não tenho um pingo de admiração por esse senhor – muitíssimo antes ao contrário.

Mas tenho que admitir: isso que Merval Pereira chamou de “sincericídio”, que Vera Magalhães classificou de atravessar a rua para pisar na casca de banana na outra calçada” é, na verdade, uma grande contribuição de Lula a este país.

Talvez tenha sido a sua melhor contribuição ao Brasil.

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E aqui vai o belo artigo da Flávia Oliveira:

Debate sobre aborto é interrompido

Por Flávia Oliveira, O Globo, 8/4/2022

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva defendeu numa live da CUT que aborto seja tratado como problema de saúde pública e direito das mulheres. Foi atacado e silenciado, como são atacados e silenciados feministas e especialistas que, num país (supostamente) democrático, tentam avançar no debate sobre direitos sexuais e reprodutivos, bem como enfrentar a tragédia imposta a milhares de brasileiras por interrupção de gravidez, ano sim, ano também. A reação de adversários políticos, líderes religiosos, formadores de opinião e até de aliados do campo progressista consumidos pelo pragmatismo eleitoral fez o pré-candidato do PT ao Planalto voltar atrás. Disse que, pessoalmente, é contra o aborto e buscou atenuar um comentário que, na origem, não era nem impróprio nem polêmico, mas óbvio.

Um mês atrás, a Organização Mundial da Saúde (OMS) reuniu numa publicação 50 recomendações relacionadas ao aborto de qualidade: de evidências científicas, incluindo prática clínica e prestação de serviços de saúde, a apoio legal e político à intervenção. A agência defendeu abertamente que “mulheres e meninas possam acessar serviços de aborto e planejamento familiar, quando precisarem”. Três em quatro países do mundo penalizam legalmente o aborto, com medidas que vão de multas a prisão de quem realizar ou auxiliar na interrupção. Anualmente, ainda segundo a OMS, 39 mil mulheres morrem e milhões são hospitalizadas por complicações causadas por 25 milhões de intervenções impróprias em todo o planeta.

Vizinhos sul-americanos recentemente flexibilizaram a legislação local. A Corte Constitucional da Colômbia, em fevereiro passado, descriminalizou o aborto até 24 semanas de gestação. A Argentina, em 2021, aprovou lei de interrupção voluntária da gravidez. Canadá, Estados Unidos, Cuba, Uruguai e Guiana são países do continente americano com aborto legal. O recém-empossado presidente do Chile prometeu avançar na pauta. “Educação sexual para decidir, anticoncepcional para não abortar, aborto legal para não morrer” foi lema na moderna e madura campanha de Gabriel Boric.

No Brasil, os pesquisadores Bruno Cardoso, Fernanda Vieira e Valeria Saraceni, todos ligados à Secretaria municipal de Saúde do Rio de Janeiro, publicaram artigo em 2020 sobre dados oficiais de aborto no Brasil. Com as informações públicas disponíveis, chegaram a 200 mil internações anuais por procedimentos relacionados à interrupção de gravidez entre 2008 e 2015. Contaram, de 2006 a 2015, 770 óbitos maternos. Concluíram que têm mais chance de morrer por intervenção inadequada as mulheres pretas e indígenas, de baixa escolaridade, com menos de 14 e mais de 40 anos, moradoras das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, sem companheiros. É mazela decorrente de pobreza, falta de informação, desassistência.

Pesquisa recente do Instituto Patrícia Galvão e do Instituto Locomotiva mostrou que oito em dez entrevistados — 2 mil homens e mulheres com 16 anos ou mais — reconhecem que as principais vítimas da criminalização do aborto são mulheres pobres; 84% sabem que a interrupção clandestina em condições inadequadas é causa de morte de grávidas no país. Dois terços dos brasileiros consultados concordam que criminalizar não resolve o problema; 64% dizem que aborto deveria ser questão de saúde pública ou de direitos; só 3% disseram que é assunto para religião.

No passado, o bispo Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus, chegou a defender a descriminalização do aborto, referindo-se às muitas mulheres que perderam a vida “em clínicas de fundo de quintal”. Hoje, o debate é interditado, sobretudo entre evangélicos. Em seguidas eleições, é usado por candidatos conservadores para minar o apoio aos progressistas. Àquele grupo, interessam o reducionismo do contra ou a favor, à moda Fla-Flu, e o silenciamento do debate democrático.

Na consulta Locomotiva/Patrícia Galvão, três em cada quatro brasileiros defenderam que os casos em que o aborto legal é permitido devem ser mantidos ou ampliados. Mais da metade (52%) declarou que a interrupção deve continuar autorizada em casos de estupro, risco à vida da gestante e anencefalia fetal; outros 22% querem maior flexibilização da lei. Eleitorado e candidatos à Presidência — e, sobretudo, ao Legislativo — precisam falar e ouvir sobre descriminalizar o aborto, avançar na legislação em que a intervenção é permitida e/ou garantir o acesso legal para que mulheres não saiam mutiladas nem mortas ao interromper a gestação. O tema é tão urgente quanto dramático, porque se relaciona à formulação de políticas públicas e ao arcabouço legal de enfrentamento a uma realidade que onera o sistema de saúde e enluta, sobretudo, famílias pobres.

11/4/2022

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