Como interpretar as surpresas do primeiro turno

Meio mundo está perplexo, em busca de explicações para as surpresas do primeiro turno. Algo similar só tinha acontecido na eleição de 1974, quando ocorreu o inesperado: a vitória do MDB em 16 estados na eleição para o Senado. Não há como escamotear: o bolsonarismo, além de conquistar importantes casamatas no Congresso e em governos estaduais, vai para um segundo turno revigorado pelo pronunciamento das urnas.

Certamente houve fatores conjunturais a incidir nos resultados, mas é preciso mergulhar em águas mais profundas para captar mudanças estruturais da sociedade.

Em busca de respostas, começo por uma mensagem enviada na sexta-feira por um amigo, eleitor de Jair Bolsonaro e com sólida formação intelectual, um dia após o debate da Globo e antes da eleição do domingo. Dizia ele: “No domingo teremos grandes surpresas”. Fundamentava sua afirmação com o argumento de que a maioria dos presidenciáveis não estava entendendo “as profundas mudanças da sociedade brasileira” e que “eles têm um discurso de outra época!”.

Acrescentava: “A cada eleição, a partir de 2014, os resultados mostram uma área dinâmica da sociedade brasileira – Centro-Oeste, Sul e Sudeste – rompendo com formas de controle de poder tradicionais. Existe o envelhecimento dos partidos tradicionais outrora fortes (PSDB, PT e sucedâneos do antigo PFL)”. E destacava o “surgimento de uma nova Centro-Direita Liberal-Conservadora”. Também chamou a minha atenção para o enraizamento dos valores da família e pelo anseio de crescimento econômico por parte da sociedade.

Quanto à previsão de grandes surpresas, nem preciso dizer que ele acertou na mosca. As causas apontadas guardam semelhanças com a pesquisa “Percepções e valores da periferia de São Paulo”(1), realizada pela Fundação Perseu Abramo, do Partido dos Trabalhadores. Ela procurou entender por que eleitores da periferia não votaram em candidatos do PT na eleição de 2016.

Estranhamente, o Partido dos Trabalhadores não traduziu para o campo da atuação política a conclusão de sua própria pesquisa: “A mistura entre valores do liberalismo, do individualismo, da ascensão pelo trabalho e do sucesso pelo mérito, com valores mais solidários e coletivistas relacionadas à atuação do Estado, à universalização de direitos, à ampliação da inclusão social, permeiam a visão de mundo e o imaginário dessa nova classe trabalhadora das periferias de São Paulo.”

Tais valores são enraizados nas camadas mais pobres, aquelas que ganham até dois salários mínimos, mas também na chamada nova classe média, com renda entre dois a cinco salários mínimos. No universo abordado, duas instituições se destacam: a família e a religião.

A esquerda não soube interpretar os valores das camadas periféricas, reagindo a eles de forma preconceituosa. O empreendedorismo tem forte apelo entre os mais pobres, assim como o desejo de prosperar na vida, mas são interpretados como expressão concentrada do “neoliberalismo”.

A “teologia da prosperidade” pregada pelas igrejas pentecostais também é pejorativamente qualificada como “neoliberal”, assim como a aspiração de crescer pelo mérito é interpretada como uma manifestação do individualismo. Entende-se: a esquerda continua apegada a bandeiras universalistas e ao conceito de lutas de classe, em um mundo poliverso, para usar a expressão do sociólogo Elimar Pinheiro do Nascimento, e de fragmentação das classes sociais.

A bandeira da defesa da família e do respeito de seus valores não fizeram parte, por exemplo, da agenda do candidato Lula. Quem a empunhou foi Jair Bolsonaro. Da mesma maneira, a visão de Lula do papel do Estado ainda é a mesma da era do “nacional-desenvolvimentismo”. Isso em um quadro em que as camadas mais pobres clamam por um estado provedor de bons serviços públicos, especialmente por uma educação de qualidade para seus filhos, conectada com as demandas do mundo atual.

A família é a instituição que dá aos seus membros o sentimento de dignidade, em meio de tantas adversidades. As igrejas, principalmente as evangélicas, substituem o papel do Estado em áreas nas quais ele é absolutamente ausente. Exemplo disso é que prestam serviços de bem-estar nas periferias, por meio de redes de solidariedade, além de abrir possibilidades para o ingresso no mercado de trabalho, incentivar a educação e fortalecer laços familiares. Também contribuem para a diminuição da violência doméstica, ao combater o alcoolismo.

Essas constatações foram exaustivamente comprovadas pelo livro seminal “Povo de Deus” (2), do antropólogo Juliano Spyer. Lula e muitos dirigentes do PT leram o livro, mas parecem não ter entendido seus recados.

Um dos grandes desafios é como compatibilizar a laicidade do Estado com a aspiração dos evangélicos de participar da esfera pública. Artigo do sociólogo Edin Sued Abmansur (3), publicado pela própria Fundação Perseu Abramo, coloca o dedo na ferida: “Este é um grande problema para a democracia, pois ele diz respeito diretamente à extensão e à disponibilidade de um dos mais fundamentais direitos da cidadania que é a participação na esfera pública. Quem defende um estado laico ideal, supra histórico, fundado exclusivamente numa racionalidade também ideal e que, em função disso, gostaria de ver a religião alijada dos debates públicos, acaba promovendo o oposto daquilo que defende: a exclusão política de grandes contingentes da população”.

Bolsonaro dá uma resposta simplista sobre essa questão complexa: “o Estado é laico, mas o presidente é cristão”. E qual a resposta de Lula?

A análise das urnas requer ainda levar em consideração questões decorrentes da globalização e das inovações tecnológicas, até mesmo como reação a elas. Entre eles estão a descrença nos partidos, na ciência e nas instituições da democracia liberal; a fragmentação das classes sociais, o papel das redes sociais, e a polarização política que tem levado ao desaparecimento de um centro político estabilizador da democracia.

Não sabemos se Lula absorverá os ensinamentos de mudanças tão profundas. Difícil dimensionar se ainda vai recuperar o tempo perdido. Por isso mesmo o segundo turno não será meramente homologatório do primeikro e seu resultado está em aberto.

(1) https://fpabramo.org.br/publicacoes/publicacao/percepcoes-e-valores-politicos-nas-periferias-de-sao-paulo/

(2) www.metropoles.com/blog-do-noblat/artigos/o-elefante-na-sala-por-hubert-alqueres

(3) https://fpabramo.org.br/2017/06/01/periferia-religiao-politica/

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 5/10/2022.

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