Durante um bom tempo da minha juventude e do início da maturidade, ali entre os 16 e os 40, meus maiores ídolos musicais foram Bob Dylan e Chico Buarque de Hollanda. Não que não sejam mais meus ídolos, agora na velhice; de forma alguma. Continuam sendo, sim, e não deixarão de ser nunca – mas é que, depois de velho, deixei de colocá-los assim numa posição mais alta, e os botei junto com os outros tantos.
Tem tudo a ver com a passagem do tempo, é claro, com o processo de ir ficando mais maduro.
Faz parte da juventude, essa doença que o tempo cura, a coisa de transformar tudo em Fla x Flu – Rolling Stones ou Beatles? John Lennon ou Paul McCartney? Caetano ou Chico?
Eu era, sempre fui Beatles. Era lennonista fanático. Depois de velho me percebi mccartneyista, embora tenha, evidentemente, todo o respeito por John. (E não é culpa dele se ouvimos tanto “Imagine” e “Happy Xmas (War Is Over)” que elas acabaram ficando chatas.)
Nos tempos de Regina Lemos, ela era caetanista, eu era chiquista. Claro que amávamos os dois, mas não iríamos perder uma oportunidade de brigar, nós que brigávamos tanto, e então quanto mais chiquista eu ficava, mais ela radicalizava no caetanismo.
Tudo isso é bobagem, é claro, é óbvio. Chico e Caetano são absolutamente grandes, geniais, maravilhosos – e, conforme Vandré tentou ensinar àquele Maracanãzinho lotado que vaiava, imagine!, Antonio Carlos Brasileiro Jobim e Francisco Buarque de Hoillanda , a vida não se resume a festivais. Apesar dos Oscars, das Palmas e Ursos de Ouro, os filmes e as canções não estão nem aí para competir uns com os outros. E que beleza que haja tantos artistas maravilhosos, tantos diferentes estilos, tantas formas diferentes de se expressar, e qualquer maneira de fazer arte vale a pena, qualquer maneira de fazer beleza valerá.
Mas isso tudo aí acima é na verdade um grande nariz de cera.
Nariz de cera: jargão jornalístico para designar começo de texto que na verdade adia o que é mais importante, que não fala logo de cara o tema central, o fulcro da questão.
O tema central do texto é o fato de Chico ter anunciado que não cantará mais “Com Açúcar, Com Afeto”.
Parece que ele disse que as feministas têm razão, e “Com Açúcar, Com Afeto” é uma canção machista.
Então ele resolveu “cancelar” a canção.
Foi aí que me lembrei dos anos 60, quando todos éramos jovens – Dylan, Chico, Caetano, Paul, John, Mick, Keith, Donovan, Cat, Joan, Nara, Sidney, Paulinho, o outro Paul e Art, Gil, Bethânia, Gal, Peter, Paul, Mary…
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Chico inovou antes dos Beatles – e eu sempre adorei esse detalhe. Chico, o cara que os caetanistas radicais costumavam chamar de tradicionalista, antiquado, velho, careta, foi o primeiro compositor – a não ser que me provem o contrário – a publicar, em seu disco, todas as letras das canções.
Aconteceu no seu primeiro LP, Chico Buarque de Holllanda, de 1966, aquele com as duas caras, que nem se fossem os emojis de hoje em dia, uma séria, uma sorridente. 1966.
Em junho de 1967, os Beatles lançaram Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band – e um porrilhão de artigos e livros sobre música pop registrou que, entre vários fenômenos do disco fantástico, estava o fato de que era o primeiro LP que trazia as letras das músicas.
Não era. Num país periférico, subdesenvolvido, vivendo então sob uma ditadura militar, Chico Buarque já havia feito isso.
No seu segundo disco, Chico Buarque de Hollanda Volume 2, de 1967, vinha “Com Açúcar, Com Afeto”, essa absoluta maravilha, essa obra-prima.
Na contracapa do disco, além de todas as letras, havia um texto assinado por Chico apresentando seu disco. O terceiro parágrafo dizia o seguinte:
“Insisti em botar no disco o ‘Com Açúcar, Com Afeto’, que eu não poderia cantar por motivos óbvios. O problema foi solucionado com rara felicidade pela voz tristonha e afinadíssimas de Jane que, ao lado de seus dois irmãos Morais, enfeitou ‘A Noite dos Mascarados’.”
Em 1967, o jovem Chico Buarque de Hollanda, um dos melhores poetas da Língua Portuguesas, achava que, “por motivos óbvios”, não poderia cantar uma música em que a narradora é uma mulher.
Três anos antes, o jovem Bob Dylan havia gravado “North Country Blues”, uma canção de beleza extraordinária, em que a narradora conta a história de sua vida – que havia se casado com um mineiro, tido filhos com ele, sido abandonada por ele, e sabia que seus filhos também iriam embora, assim que tivessem idade para fugir dali.
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Na adolescência, pensava muito nessa coisa de Chico ter achado que só mulher pode cantar uma canção em que o narrador é uma mulher, e Dylan de maneira tão absolutamente natural ter cantado “North Country Blues”.
Fiquei até curioso para comparar as idades. Vejamos. Dylan, de 1941, estava com 23 anos quando gravou “North Country Blues” em 1963. Chico, de 1944, estava também, por coincidência, com 23 anos quando achava que não podia cantar “Com Açúcar, Com Afeto” porque a narradora era mulher.
A juventude é uma doença que o tempo cura, e logo Chico deixou de lado aquela besteira, e passou a cantar suas extraordinárias canções de narradora mulher.
Chico, e isso todo mundo está cansado de saber, é um dos mais perfeitos tradutores da alma feminina. Fez não uma ou duas, mas pra lá de uma dezena de músicas belíssimas que exprimem a forma feminina de ver o mundo. Várias delas ele gravou – como, por exemplo, “Bárbara” (em 1972), “Ana de Amsterdan” (1972 e 1973), “Tatuagem” e “Tira as Mãos de Mim” (as duas em 1973), “OIhos nos Olhos” (1976), “Trocando em Miúdos” e “Pedaço de Mim” (1978).
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Há uma antiga história – nunca pude checar se é verdadeira, ou se apenas uma lenda – de que, muitos e muitos anos atrás, quando Chico e Marieta Severo ainda estavam casados, aquela mulher sensacional, diante de uma declaração qualquer do marido sobre política, teria dito o seguinte:
– “Gente, o Chico entende tudo de samba, de música, de poesia, mas não entende nada de política!”
Não sei se isso existiu ou foi inventado, mas que é a maior verdade dos fatos, lá isso é.
Não quero trazer de volta aqui os elogios de Chico à ditadura dos irmãos Castro. Nem sua adoração pelo PT e pelo coronel que é o dono do partido.
Só gostaria de dizer – meu Deus, e aqui vai o lead, no pé da matéria, que horror! – que uma das coisas mais abjetas deste mundo de Deus e o Diabo, na minha opinião, é essa noção de que só mulher pode cantar as canções em que a mulher é a narradora.
Uma das noções mais idiotas que pode haver é a de que só negro pode escrever sobre a vida de negro, dirigir filme sobre negro – ou que só europeu pode escrever ou filmar sobre europeu, ou que só mulher pode dirigir filmes sobre mulheres, ou que só homo pode falar sobre homo, ou que só trans pode falar sobre trans, e assim por diante, e etc, etc, etc, etc…
E outra das noções mais idiotas que pode haver na vida é achar que é preciso botar fogo nas estátuas ou quadros que retratam escravagistas, machistas, ou transfóbicos, ou o que for.
“Com Açúcar, Com Afeto”, e também “Marina” de Dorival Caymmi, “Fez Bobagem” e “Camisa Listrada”, de Assis Valente, “Sem Açúcar”, de Chico, “Ai, que Saudade da Amélia”, de Ataulfo Alves e Mário Lago, “Esse Cara”, de Caetano, e tantas, tantas outras, são canções que expõem a visão machista que existia em sua época. Várias dessas aí não são uma defesa do machismo, e sim exatamente o contrário. São a condenação explícita do machismo.
Há poucas coisas piores do que essa idiotice absoluta da rendição às patrulhas do “politicamente correto”.
O exagero do “politicamente correto” é o horror total. É a paixão pelas trevas.
Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro
Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário
Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável
Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei
Como seguramente diria Brecht, começa-se cancelando “Com Açúcar, Com Afeto” – e daqui a pouco estaremos cancelando não apenas a História, o sentido de se entender o contexto histórico, mas estaremos cancelando a nós mesmos. A tudo ao nosso redor, e a nós mesmos.
27 e 28/1/2022
Belissimo texto, mestre Servaz. Sintetiza o sentimento de toda uma geração. Nada apaga a grande obra de Chico, que não pode estar submetida a qualquer tipo de censura, nem mesmo a autocensura.
Texto assertivo, com monumental viagem ao mundo da música. Sérgio Vaz, parabéns !
Belíssimo texto, carregado de História e de razão.
O politicamente-correto no trato diário das pessoas é válido,na arte,não – O texto é ótimo,o único senão foi chamar Lula de ”coronel”,o ex-operário é um sujeito cheio de erros e acertos como todo mundo,infalível só Deus e o papa,rs.