Acabou

O Capitão das Trevas sai de cena do jeito que sempre foi: grosseiro, tosco, sem um pingo de educação, de respeito às instituições e às pessoas.

Em seu primeiro pronunciamento após os dois meses de silêncio, falou como sempre falou: de maneira confusa, sem clareza, sem limpidez. Mas o recado que tentou passar para seu gado poderia ser resumido em algo assim:

– Eu bem que tentei dar o golpe, mas, pô, não tive a ajuda que eu esperava. Aí não deu, então desculpa aí qualquer coisa, talkey?

Um monstro. Um rato. Um verme.

Não me animo, neste último dia do ano, a escrever sobre ele mais nada do que estas poucas linhas. Preguiça. Até porque bons articulistas fizeram, nos últimos dias, ótimos textos lamentando o rastro de destruição que seu desgoverno deixa, mas ao mesmo tempo comemorando que agora essa danação acabou.

“A fuga no avião presidencial, deixando seus apoiadores tomando chuva e passando vergonha na porta dos quartéis, é o desfecho patético de um governo medíocre, covarde e autoritário”, resumiu Pablo Ortellado no Globo deste 31/12.

Terminou “o mais desastroso governo do Brasil pelo menos desde a redemocratização”, escreveu Vera Magalhães no Globo de 30/11. “O país precisará, a partir de domingo, ser reconstruído em todas as suas esferas, das relações sociais à economia, passando por direitos humanos, educação, saúde, ciência, cultura, meio ambiente e todas as demais áreas da vida nacional.”

E ela crava: “Que o adeus a Bolsonaro seja definitivo, e que o Brasil saiba desarmar a bomba do extremismo golpista que ele deixou antes de sair pela porta dos fundos do palácio e da História.”

Exatamente no mesmo tom, Ricardo Noblat escreveu em seu blog, o mais antigo e tradicional sobre política do jornalismo brasileiro, ser  necessário que o país reconstrua com a celeridade necessária as bases para que o sujeito “nunca mais volte, e para que ninguém igual ou parecido com ele venha um dia a sucedê-lo”.

Abaixo estão as íntegras dos três artigos.

Que em 2023 cada um de nós ajude como puder na reconstrução do país devastado pelo inominável. (Sérgio Vaz)

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Final melancólico

Por Pablo Ortellado, O Globo, 31/12/2022

Depois de dois meses de silêncio, no último dia útil do seu governo, Bolsonaro falou. Foi elíptico e evasivo sobre os temas importantes e fugiu logo em seguida para os Estados Unidos. Foi um final melancólico para uma aventura perigosa. A democracia brasileira sobreviveu, mas saiu chamuscada. Ganhamos um respiro, mas o risco não foi de todo afastado.

A maior parte do pronunciamento de mais de 50 minutos foi dedicada a celebrar as realizações do governo. Mas, entre louvores ao preço baixo dos combustíveis e à criação do Auxílio Emergencial, surgiram alertas sobre a volta do PT e justificativas para ele não ter atendido aos radicais acampados nos quartéis. Tudo sob uma chuva de comentários de espectadores no YouTube pedindo intervenção militar.

Bolsonaro disse que, nestes dois meses de silêncio estratégico, não ficou parado: “Como foi difícil ficar dois meses calado trabalhando para buscar alternativas!”. As alternativas, sabemos pelas movimentações noticiadas pelos jornais, foram a busca do apoio das Forças Armadas e do Parlamento para uma ruptura autoritária.

Reunindo as menções elípticas, espalhadas pelos discurso, dá para ter uma ideia do que ele quis dizer: “Tem gente chateada comigo, [dizendo] que deveria ter feito alguma coisa, qualquer coisa. Mas, para você conseguir fazer alguma coisa, mesmo nas quatro linhas, você tem que ter apoio”. E se defendeu: “Entendo que fiz a minha parte, estou fazendo a minha parte. Agora, certas medidas têm que ter apoio do Parlamento, de alguns do Supremo, de outros órgãos e instituições”.

Bolsonaro quis atender aos golpistas acampados nos quartéis, mas simplesmente não conseguiu apoio. “Não posso fazer algo que não seja bem feito e que, assim, os efeitos colaterais sejam danosos demais”, concluiu. Bolsonaro não teve ou não conseguiu criar as condições para cumprir seus propósitos autoritários. Mas tentou. Enfrentou, porém, a resistência firme da sociedade civil e da imprensa séria.

Enfrentou também a resistência do Parlamento, principalmente quando esteve sob a liderança política de Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre. Em nenhum momento o Parlamento sinalizou que daria apoio a um movimento de ruptura, por meio da decretação de Estado de Sítio. O Congresso conteve a ofensiva legislativa na arena dos costumes e moderou os ataques de Paulo Guedes contra os direitos dos trabalhadores. Foi o Parlamento, também, que elevou os programas de transferência de renda a um patamar mais digno, aumentando o valor e ampliando a cobertura. O Parlamento, por meio da CPI da Covid, também desvelou a irresponsabilidade criminosa de Bolsonaro com relação à compra das vacinas.

Bolsonaro enfrentou também a resistência da Justiça. O Supremo Tribunal Federal (STF) anulou alguns dos ataques mais danosos ao sistema de proteção ambiental e deu autonomia aos governadores para que pudessem proteger a população no momento mais crítico da pandemia. Quando as mobilizações golpistas se disseminaram, foi a ação firme do ministro Alexandre de Moraes que as conteve. Sem a mão dura dele, é bem possível que não tivéssemos chegado até aqui.

Servidores públicos no ICMBio, na Polícia Federal e no Ministério Público também desafiaram as orientações políticas dos chefes e batalharam para fazer as instituições cumprir suas funções legais.

Sem os limites impostos pela sociedade civil, pela imprensa, pelo Parlamento, pela Justiça e por corajosos servidores públicos, não teríamos atravessado o deserto. Devemos a cada um desses atores um caloroso “obrigado”.

Durante quatro anos, Bolsonaro repetiu que a “liberdade” deveria valer mais que a própria vida. Mas, agora, quando teria de colocar seus ideais à prova, preferiu fugir para os Estados Unidos, temeroso de que, com a volta do domínio da lei, seus crimes sejam investigados e ele termine devidamente preso. É inevitável comparar a ignomínia de Bolsonaro com a altivez de Lula, que, podendo fugir, se submeteu com dignidade a mais de dois anos de prisão. Bolsonaro não é pequeno, é minúsculo.

A fuga no avião presidencial, deixando seus apoiadores tomando chuva e passando vergonha na porta dos quartéis, é o desfecho patético de um governo medíocre, covarde e autoritário.

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Com a fuga para não ser preso, a obra de Bolsonaro está completa

Por Ricardo Noblat, Blog do Noblat, 31/12/2022

Bolsonaro abandonou o país sem completar seu mandato e deixou os custos de sua fuga para o Tesouro Nacional, alimentado pelo dinheiro de impostos que todos pagamos. Ou melhor: que a maior parte dos brasileiros paga, porque a outra, dos mais ricos e remediados, tem meios e modos de não pagar nada ou quase nada.

 

Se o preço a pagar para nos livrarmos dele fosse só esse, estaríamos no lucro, mas não. Ele deixa um país mais dividido do que o que recebeu, e com a maioria dos seus problemas agravados. Alguém será capaz de lembrar uma única obra que ele fez? Por não ter feito, passou a dizer que terminou obras inacabadas.

Educação, saúde, meio ambiente, cultura, saneamento urbano, direitos humanos, assistência social, tudo piorou. Algo como 33 milhões de pessoas passam fome. Há mais de 10 milhões desempregadas. E quando Bolsonaro resolveu gastar dinheiro com os mais pobres foi só pensando em se reeleger.

Deixou um país mais armado, os militares politicamente mais ativos, e uma democracia que sofreu graves abalos, embora tenha triunfado. Ao Poder Judiciário os méritos de não se acovardar diante de um presidente e de generais que o ameaçaram. Há muito ainda a ser contado sobre os bastidores da peleja farda contra toga.

O maior desafio que o presidente eleito tem pela frente não será governar melhor que o seu antecessor, tarefa fácil por comparação, mas o de pacificar o país como prometeu durante a campanha. Não é sobre esquerda e direita, é sobre os que prezam o Estado de Direito e têm ódio e nojo de ditaduras de qualquer cor.

O PT cometeu muitos pecados nos quase 14 anos em que governou o país, mas nunca pôs as liberdades em risco. Do fim da ditadura de 64 para cá, só se ouviu falar em golpe quando chegou ao poder o ex-capitão afastado do Exército que planejou detonar bombas em quartéis se não recebesse um salário, ao seu gosto, mais decente.

Agora que ele se foi porque sabe muito bem o que fez em todas as estações dos últimos quatro anos e tinha medo de ser preso se permanecesse aqui, o país terá de reconstruir com a celeridade necessária as bases para que nunca mais volte, e para que ninguém igual ou parecido com ele venha um dia a sucedê-lo.

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Adeus, Bolsonaro

Por Vera Magalhães, O Globo, 30/12/2022

O ano termina amanhã e, com ele, o mais desastroso governo do Brasil pelo menos desde a redemocratização. O país precisará, a partir de domingo, ser reconstruído em todas as suas esferas, das relações sociais à economia, passando por direitos humanos, educação, saúde, ciência, cultura, meio ambiente e todas as demais áreas da vida nacional.

Não será tarefa simples fazer as pessoas voltarem a confiar em vacinas e a seguir o calendário de imunização, mesmo de suas crianças. Parece trivial, mas dará trabalho voltar a reunir as famílias para almoçar sem que alguém levante dúvida sobre a segurança das urnas eletrônicas e a regularidade das eleições.

Levará tempo para que pais outrora moderados deixem de enxergar infiltrados comunistas nos professores dos seus filhos ou parem de bradar nos grupos de WhatsApp contra a ideologia de gênero nas escolas caras em que matriculam suas crianças, sem ter a mais pálida ideia de que bobagem estão falando.

A sociedade brasileira foi violenta e rapidamente radicalizada nos últimos quatro anos por Jair Bolsonaro, seus filhos e apaniguados. Alimentada à força com doses diárias e cavalares de teorias da conspiração incubadas no exterior e inoculadas aqui.

O resultado são esses danos graves no dia a dia da sociedade, mas também casos extremos como as células de terrorismo doméstico que estão espalhadas pela deep web ou acampadas em frente a quartéis.

Cada um dos 37 ministros que Lula terminou de escalar nesta quinta-feira terá de lidar, além dos assuntos de sua pasta, com a tarefa de fazer o Brasil voltar a dialogar em torno de ideias que, por mais divergentes, sejam ideias, e não teorias da conspiração ou negacionismo criminoso levados de contrabando para o debate público.

O responsável por degradar não apenas a Amazônia, o ensino e a cultura, mas a simples noção de que é possível dialogar com respeito e tolerância com quem pensa diferente, está prestes a sair de fininho, à francesa, enquanto deixa o circo que armou pegando fogo.

Não se pode dizer que Bolsonaro tenha chegado a governar, no sentido de todos os dias despachar questões administrativas, econômicas e políticas que digam respeito ao conjunto da população brasileira. Não. Foram quatro anos de construção de narrativas políticas, de destruição de instituições e consensos e de obsessão por se manter no poder, proteger a si e aos seus.

São esses os vetores que levaram o ocupante do Planalto até amanhã a se ausentar de maneira inédita e vexaminosa do governo que ainda levava seu nome pelos dois últimos meses inteiros de seu mandato.

Remoendo a derrota, maquinando viradas de mesa ou planejando a saída do país, pouco importa. É inacreditável que centenas de brasileiros ainda estejam dormindo em barracas em louvor a um político que chegou aonde chegou de forma incidental, se portou de maneira vil numa pandemia que ceifou mais de 694 mil vidas e, diante da derrota, age sem um pingo de hombridade.

Não houve nenhum governo impecável na História democrática do Brasil, antes e depois da ditadura militar. Cada um dos presidentes eleitos da República teve suas idiossincrasias, e cada ciclo foi marcado, em maior ou menor grau, por corrupção, fisiologismo, patrimonialismo e outras chagas históricas que o Brasil teima em não erradicar.

Lula, que retorna agora, cometeu erros históricos, imperdoáveis para quase metade da população brasileira, que não reconhece sua vitória e para quem ele terá obrigação de também governar, sob pena de vivermos novo ciclo de interdição da política e de paralisia econômica.

Mas ninguém desde a ditadura havia atuado deliberadamente para conspurcar o Estado Democrático de Direito. Que o adeus a Bolsonaro seja definitivo, e que o Brasil saiba desarmar a bomba do extremismo golpista que ele deixou antes de sair pela porta dos fundos do palácio e da História.

31/12/2022

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