Semana passada eu estava rico, e feliz com minha riqueza. Esta semana tudo mudou. No começo do ano eu gastava na feira uns R$ 35 por semana. Fiquei fora dois meses e a conta explodiu. Pensei que minha mulher estava aproveitando para dar banquetes para as amigas e voltei cheio de má intenção. Ela me paga, pensei. Aí fui à feira com R$ 30 no bolso, só para provar que dava. Ela do meu lado. A gente estava na segunda barraca e os 30 já tinham ido embora. E ainda faltava comprar as batatas, o alface, o tomate. A minha sacola tinha umas cenouras, um brócolis, umas beterrabas e uma bandejinha de quiabos. A dela ainda estava vazia.
Não pode ser a guerra na Ucrânia, pensei. De lá só vem trigo, milho e fertilizantes. Nunca ouvi falar que nossos legumes precisassem de fertilizantes da Rússia ou da Ucrânia. Por que será que os preços dos legumes dispararam?
Segundo a teoria econômica estabelecida, ou estamos comendo legumes demais – e os preços sobem – ou estamos produzindo pouco legume, levando a uma escassez. No primeiro caso, um choque de consumo teria tornado a produção insuficiente para atender a toda a demanda. Mas não foi isso que aconteceu. No segundo, teria havido um choque de oferta, que ficou muito abaixo da demanda habitual. Isso é possível, porque chuva e seca andaram se alternando durante boa parte do ano passado e começo deste, em diferentes regiões do país. Mas, na teoria, tudo tende para o equilíbrio e uma hora preços e produção vão encontrar seu ponto médio e estabilizar. Mas, em que patamar? No da pré-crise ou no da pós-crise?
To be or not to be, eis a questão. No capitalismo, ninguém sabe. A incerteza é total. Pode ser que as pessoas desistam de comer legumes e os plantadores desistam de plantar. Legumes vão virar produtos para consumo próprio de quem plantou. Pode ser também que, havendo uma superprodução de legumes, quem estiver superavitário em legumes troque seus superávits por outras coisas, desde que do outro lado tenha gente disposta a trocar o que produz em excesso por legumes. Sempre será necessário haver um excesso para corrigir uma escassez. E o inverso é verdadeiro. Era assim que se vivia nos mercados primitivos, quando ainda não havia moeda para precificar as trocas.
Vamos voltar aos tempos do escambo? No capitalismo, ninguém sabe. Pode ser que sim, pode ser que não. Se as moedas não valerem mais nada, com certeza vamos voltar ao escambo. Mas nenhum capitalista vai admitir que sua moeda não vale mais nada. Porque, se admitir, será o fim do capitalismo. Estivemos bem perto disso na crise dos subprimes, em 2008. E ainda não saímos dela. Muitos bancos ainda estão bancando outros bancos para o sistema mundial não quebrar. O capitalismo faz de conta que a crise passou.
Passou coisa nenhuma! A China é a prova disso. Boa parte do capitalismo ocidental se transferiu para lá depois da crise de 2008. Porque era muito mais barato produzir na China do que no Ocidente. Isso já se sabia e estava acontecendo havia décadas. Mas a crise de 2008 acelerou o processo. Hoje a China é a segunda maior economia do mundo. Em 2008 era a quarta. Quem diria, o capitalismo está se segurando nas pernas graças ao comunismo chinês.
Isso porque o comunismo é o único sistema econômico que permite o controle sobre a oferta e a demanda. Não é um controle total, mas é altamente eficaz. No capitalismo, o controle é um jogo de pôquer e o custo das apostas é altíssimo, com resultados em que a “eficácia” é medida por quanto um lado ganhou e o outro perdeu. Não importa quanta regulação exista, no capitalismo um ganha e outro perde. No comunismo, perdas e ganhos são “socializados”. Ninguém ganha, ninguém perde. O resultado é sempre um empate. Se não der empate, o sistema desaba.
A ex-URSS desabou. O custo da militarização foi tão grande, durante as décadas da Guerra Fria, que a economia soviética quebrou nos anos 80. A China ainda não, mas, por outros motivos, corre sério risco. No comunismo, a apropriação do lucro deve ser feita pelo Estado e por ele distribuído à população, através de investimentos em educação, saúde, habitação, infraestrutura urbana, trabalho, ciência, tecnologia etc. A China está subvertendo o velho Marx e criando uma casta de privilegiados riquíssimos dentro de um Estado ainda paupérrimo.
Voltando aos legumes, a China está fazendo a parte paupérrima da população plantar legumes para a parte rica. E certamente o preço não compensa para os pobres. Um ajuste de contas é uma questão de tempo, ainda sem data. Aqui, a minoria rica ainda não percebeu que a maioria pobre pode deixá-la sem legumes. A hora do ajuste já tem data.
Nelson Merlin é jornalista aposentado e vidente.