A primeira mentira de Bolsonaro

A primeira vez que o nome de Jair Bolsonaro apareceu na imprensa foi com uma mentira.

Que Bolsonaro mente descaradamente, desavergonhadamente não é novidade alguma. Desde que assumiu a Presidência da República, o cara já deu 6.286 declarações falsas ou distorcidas, segundo levantamento da organização Aos Fatos, no seu site . Isso até o dia 20 de setembro.

Na entrevista que deu ao Jornal Nacional no dia 22 de agosto, contou uma mentira a cada 3 minutos, segundo checagem do Estadão Verifica.  No debate entre os candidatos à Presidência, no dia 28 de agosto, exibido pela Rede Bandeirantes e TV Cultura de São Paulo, foram 30 mentiras.

Novidade no fato que ele Bolsonaro mente, sem dúvida não há. Mas eu não sabia, ou não me lembrava, o que dá no mesmo, que o texto da carta que ele assinou e a revista Veja publicou, em setembro de 1986, na seção Ponto de Vista, não foi escrito por ele.

A história da carta foi contada de maneira deliciosa em um artigo publicado neste domingo, 25/9, no jornal O Globo, por Ernesto Rodrigues. Ernesto foi o jornalista que, na redação da sucursal da Veja no Rio de Janeiro, recebeu em agosto de 1986 a visita do então jovem militar, que levava uma carta assinada por ele em que se fazia uma crítica duríssima à política salarial do governo José Sarney. A carta foi publicada com o título de “O salário está baixo” – e por causa dela Bolsonaro foi punido com 15 dias de prisão domiciliar, por quebra de disciplina e hierarquia, considerada uma transgressão grave pelo regulamento do Exército, como informa o jornalista Luiz Maklouf Carvalho em seu livro O Capitão e o Cadete (editora Todavia, 2019): “O caso teve grande repercussão, deu ao capitão seus primeiros quinze minutos de fama”.

A partir daí, o capitão que reclamava dos baixos soldos dos militares começaria a ficar conhecido, o que resultou em sua entrada na política.

Por ter se oferecido para assinar um texto que não era seu!

Eis o artigo de Ernesto Rodrigues. (Sérgio Vaz)

 

A primeira mentira

Por Ernesto Rodrigues, O Globo, 25/9/2022

Jair,

Duvido que você entenda tudo o que se segue sem a ajuda dos generais recauchutados que você foi buscar nas salas escuras da vergonha nacional. Se quiser continuar, portanto, é bom pedir a ajuda deles.

Sou jornalista profissional. Faço parte da categoria que, diariamente, você insulta, calunia, ameaça e, no fundo, por mais rasos que sejam seus voos mentais, sonha ver morrendo, bem devagar, nos porões escuros, sangrentos e covardes que você elegeu como altar da pátria.

Você, portanto, não me respeita.

Mas já me respeitou. Até bateu continência pra mim, comportado, vergando o uniforme de gala dos paraquedistas do Exército Brasileiro, cuja história você atualmente tinge de delito e vergonha.

Refiro-me àquela manhã do fim de agosto de 1986, quando você foi até a sucursal da revista Veja, na Rua da Passagem, Zona Sul do Rio, e ofereceu uma carta para a seção Ponto de Vista, espaço que a revista reservava, à época, na última página, para manifestações da sociedade. Coube a mim, substituto momentâneo do chefe da sucursal, avaliar o eventual interesse que Veja poderia ter pelo teor da carta, que acabaria publicada na edição de 3 de setembro daquele ano.

Aquela carta foi a primeira das muitas mentiras de sua vida pública. À exceção do próprio gesto de assiná-la, uma delinquência que levaria você à prisão disciplinar e que você transformaria em combustível tóxico de sua carreira política, não havia nada de Jair Bolsonaro naquele texto respeitoso, civilizado e dotado de conceitos e construções gramaticais que, os brasileiros e eu só saberíamos depois, você jamais seria capaz de dominar ou compreender.

Três décadas depois daquele 3 de setembro, durante a produção de um documentário, descobri, por acidente, de uma fonte confiável, que a farsa que você protagonizou naquela manhã, valendo-se do espaço que a revista lhe confiara, não foi apenas passar-se por autor de um texto escrito por outra pessoa.

Na verdade, você não estivera ali como “um cidadão brasileiro cumpridor de seus deveres, patriota e portador de uma excelente folha de serviços” à beira do desespero com o baixo salário. Você tinha sido, segundo minha fonte, apenas um boi de piranha a serviço de um grupo de oficiais que pretendia afrontar o general que, à época, comandava o Departamento de Pessoal do Exército Brasileiro. Eles, sim, tinham sido os verdadeiros autores intelectuais da carta que você se limitou a oferecer à Veja, calado, em posição de sentido.

Sou, portanto, o único jornalista da grande imprensa que conheceu você em estado bruto, resignado com sua própria ignorância, acomodado bovinamente em suas intransponíveis barreiras cognitivas e com aquele olhar de contido espanto para o desconhecido. Antes, portanto, de você ser autorizado por milhões de brasileiros a disseminar, sem receio, vergonha ou limite, a estupidez, o ressentimento e a barbárie que hoje sintetizam sua passagem devastadora pela Presidência da República.

Não me arrependo da decisão jornalística que tomei de encaminhar a carta para avaliação da direção da revista em São Paulo. Só lamento que o Jair Messias Bolsonaro que assinou aquela carta civilizada, ainda que controversa, tenha escondido, covardemente, da primeira à última linha, a tragédia que você começou a desenhar exatamente naquela manhã, à custa da imprensa livre que hoje tenta calar.

Entendeu, Jair?

Entendeu nada.

25/9/2022

2 Comentários para “A primeira mentira de Bolsonaro”

  1. Sensacional! Parabéns ao Ernesto por esse texto corajoso e ao Sergio pela deliciosa entrada!

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