A desgraça da graça

Gênese da democracia, liberdade é valor intrínseco, inegociável. Está na raiz da evolução humana e ilumina o progresso das civilizações. Nestes tempos de Bolsonaro, nunca ela foi tão surrada, deturpada, vilipendiada. Mais do que usá-la para justificar suas ações autocráticas, como o acintoso perdão concedido a Daniel Silveira, a intenção é que a “defesa da liberdade” possa legitimar o golpe, dando guarida à reação armada de segmentos da população contra a eventual – e provável – derrota eleitoral. É isso que está posto, com todas as falas, gestos e modos.

Não é de hoje que o presidente Jair Bolsonaro repete a frase “povo armado jamais será escravizado” como parte da campanha para ampliar o exército de civis com revólveres e metralhadoras nas mãos. Reincidiu no tema há duas semanas, em Passo Fundo (RS), assim, do nada. Após se vangloriar de ter dobrado a venda de armas de fogo no Brasil, voltou a pregar reação popular armada “contra qualquer ditador de plantão que queira roubar a liberdade do seu povo”.

Dias depois soube-se que o ex-secretário de Fomento e Incentivo à Cultura, André Porciuncula, havia reservado R$ 1,2 bilhão da Lei Rouanet para conteúdos “culturais” pró-armas. Um vídeo recuperado pela Agência Pública expõe o discurso feito por ele na Convenção Nacional Pró-armas, em 28 de março, no qual sugere “filmes sobre armamento, da importância do armamento para garantir a liberdade humana”.

Associada à pregação de “garantia da liberdade”, Porciuncula reforçou a plataforma bolsonarista de uso de armas contra as instituições: “Arma de fogo não é só para combater a criminalidade comum, é também para a criminalidade de Estado”. Sem qualquer constrangimento, tachou a Justiça como instância meramente burocrática, defendendo o uso de armas contra governantes – “vimos como o Estado pode ser criminoso nessa pandemia em que direitos e garantias foram sistematicamente violados, com autorização de todo o sistema burocrático”. Tudo com o aval – e incentivo – do então ministro da Cultura, Mario Frias.

Não há dúvidas, portanto, de que o uso de armas de fogo por civis contra instituições é uma política de governo do bolsonarismo, tecida diligentemente e até com requintes de se estabelecerem formas legais de financiar sua difusão.

Ao contrário da lógica e do bom senso, a repercussão das falas de Porciuncula se limitou à imprensa, alguns editoriais e críticas esparsas de políticos da oposição. Talvez o volume de absurdos diários produzidos pelo governo Bolsonaro tenha efeito anestésico ou provoque uma dislexia coletiva. Mas o fato é que as instituições – Congresso, Ministério Público e Justiça – fizeram vistas grossas à incitação oficial ao uso de armas pelo cidadão comum contra o Estado.

É gravíssimo – e pode ainda ser pior.

O decreto de perdão a Daniel Silveira, que o próprio Bolsonaro tratou como “ato simbólico” para “garantia da liberdade”, é só parte da meada. Se obtiver sucesso na empreitada de acuar o STF com a “graça” concedida, ele garantirá salvaguarda para o seu exército particular, que poderá se valer da jurisprudência ainda que a arma não cuspa palavras e sim, fogo.

No caminho, conseguirá agrupar um bando de “injustiçados” que lutarão pela clemência presidencial. De Roberto Jefferson a Allan dos Santos, passando por Zé Trovão e outros tantos que se lixam para a democracia. Trata-se de licença prévia para desacatar decisões judiciais em todas as instâncias, descumprir a lei, reverenciar a desordem. Tudo em nome da liberdade, que, pura e crédula, tem bem servido aos que a odeiam.

Um eventual êxito da “graça” de Bolsonaro será a desgraça do país.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 24/4/2022. 

Um comentário para “A desgraça da graça”

  1. Como sempre, Mary Zaidan vai ao ponto com eficiência. Essa última do bolsonarismo, arma é cultura, não é só uma provocação infame, mas uma peça da articulação que Mary escancara com absoluta clareza. Um alerta que faz em boa hora.

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