Um mentiroso de fazer corar Pinóquio

“Jair Bolsonaro agora quer convencer os brasileiros de que é presidente da República, e não o irresponsável que todos conhecem.”

“A história poderia ter sido outra? Certamente. O governo Jair Bolsonaro escreveu de próprio punho cada capítulo do roteiro macabro que nos impôs um luto sem data para terminar. Nada foi por acaso.”

“O pronunciamento de terça-feira é de fazer corar Pinóquio. ‘Somos incansáveis na luta contra o coronavírus’, disse o presidente. O mesmo do ‘e dai?’, do ‘vai comprar vacina na casa da sua mãe’, o que acusou a imprensa de ‘histeria’ e promoveu incontáveis aglomerações. Bolsonaro nunca lutou contra o coronavírus. Ele agrediu os gestores públicos que o fizeram.”

O primeira dos três parágrafos reproduzidos acima é do editorial de O Estado de S. Paulo. O segundo, do editorial de O Globo. O terceiro, da jornalista Míriam Leitão em sua coluna em O Globo.

Todos da edição desta quinta-feira, 25/3, dos jornais.

A cada dia, fica mais difícil compreender como é possível que a Câmara dos Deputados não abra um processo de impeachment de Jair Bolsonaro. (Sérgio Vaz)

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O presidente improvisado

Editorial, O Estado de S. Paulo, 25/3/2021

Jair Bolsonaro agora quer convencer os brasileiros de que é presidente da República, e não o irresponsável que todos conhecem. Esse novo personagem se apresentou ao País em cadeia nacional de TV, na terça-feira à noite, e numa reunião com governadores e dirigentes do Congresso e do Judiciário para tratar da pandemia de covid-19, no dia seguinte.

Bolsonaro vestiu um mal-ajambrado figurino de estadista nas últimas horas não porque, subitamente, passou a se preocupar com o padecimento de seus concidadãos, e sim porque a queda acentuada de sua popularidade, em razão de sua desastrosa administração da crise, ameaça sua reeleição.

Cobrado pelos líderes políticos que ainda o apoiam, mas que já começam a mostrar impaciência com seu talento para criar tumulto em vez de governar, Bolsonaro viu-se na contingência de se mostrar mais comedido e até disposto a defender a vacinação e a colaboração para o combate à pandemia.

Os panelaços que acompanharam o pronunciamento de Bolsonaro na TV mostram que os espectadores não se deixaram convencer por esse presidente improvisado. Pudera.

Depois de passar seus mais de dois anos de mandato mobilizando as atenções por ameaçar a ordem democrática, desrespeitar a Presidência e ofender a inteligência e a moral dos brasileiros, Bolsonaro jamais será visto como o líder que nunca foi. E jamais será porque, entre outras muitas razões, Bolsonaro trata seus governados como tolos, ao mentir descaradamente e esperar que alguém, além dos celerados que o idolatram, acredite.

No pronunciamento, Bolsonaro disse que “em nenhum momento o governo deixou de tomar medidas importantes tanto para combater o coronavírus quanto para combater o caos na economia”. Ora, todos sabem que o presidente foi o líder dos negacionistas da pandemia.

Além disso, o presidente teve a audácia de dizer que “temos mais de 14 milhões de vacinados e mais de 32 milhões de doses de vacina distribuídas para todos os Estados da Federação graças às ações que tomamos logo no início da pandemia”.

Da boca de um presidente que passou a pandemia inteira a desdenhar das vacinas – a certa altura, mandou comprá-las “na casa da tua mãe” – e a prejudicar a organização da imunização ao trocar três vezes de ministro da Saúde, trata-se de inaceitável escárnio. Bolsonaro espera que todos esqueçam que a maior parte das vacinas citadas em sua fala mendaz foi produzida pelo Instituto Butantan em parceria com os chineses, sem qualquer participação do governo federal. Ao contrário, Bolsonaro desprezou desde sempre a “vacina chinesa” de São Paulo e agora, como um parasita, reivindica os louros de sua produção.

Essa desfaçatez se estendeu por quatro minutos espantosos, coroados pela promessa de que toda a população será vacinada até o fim do ano – no mesmo momento em que o Ministério da Saúde revisou para baixo, mais uma vez, seu cronograma de entrega dos imunizantes. O presidente terminou manifestando solidariedade “a todos aqueles que tiveram perdas em sua família”, depois de passar meses a dizer que não era “coveiro”, que “todos vão morrer um dia”, que era preciso enfrentar a pandemia “como homem” e de ter menosprezado a dor dos brasileiros, qualificando-a de “frescura” e de “mimimi”.

No dia seguinte, Bolsonaro, depois de se reunir com governadores e dirigentes de outros Poderes, anunciou a criação de um comitê para tomar decisões sobre a pandemia – algo que deveria ter sido feito há um ano. A sensação, no entanto, é que o tal comitê é só parte da encenação mambembe de Bolsonaro.

O presidente que hoje acena com diálogo e cooperação é o mesmo que dias antes chamou de “tiranetes” os governadores que adotaram toque de recolher contra a pandemia e entrou no Supremo Tribunal Federal contra eles. Ao rejeitar a ação, o ministro Marco Aurélio Mello, além de salientar o “erro grosseiro” do presidente ao assinar ele próprio a petição, e não a Advocacia-Geral da União, disse que “ao presidente da República cabe a liderança maior, a coordenação dos esforços visando o bem-estar dos brasileiros”. Mas Bolsonaro definitivamente não nasceu para esse papel.

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300 mil vidas perdidas

Editorial, O Globo, 25/3/2021.

Negacionismo, omissão, incompetência e, sobretudo, desprezo pela vida humana arrastaram 300 mil brasileiros ao túmulo. Um ano e um mês após o registro oficial da primeira infecção pelo novo coronavírus, o Brasil é hoje tudo o que não se queria naquele 26 de fevereiro de 2020. Primeiro país em mortes diárias e segundo em total de mortes, atrás apenas dos Estados Unidos. Lá, a curva vem caindo à medida que a população é vacinada. Aqui, não para de subir enquanto faltam vacinas. Na terça-feira, o Brasil superou pela primeira vez a marca macabra de 3.000 mortes por Covid-19 em um só dia — aproximadamente um morto a cada 30 segundos. A cada quatro vítimas fatais do vírus no mundo, hoje um é brasileiro.

As 300 mil vidas perdidas para a Covid-19 no país representam aproximadamente 23% da média anual de mortes antes da pandemia. Grosso modo, de cada cinco mortos no último ano, um estaria vivo não fosse o ambiente hospitaleiro que o vírus encontrou entre nós. Viramos um assumido pária mundial, epicentro da Covid-19 e ameaça sanitária ao planeta.

A história poderia ter sido outra? Certamente. O governo Jair Bolsonaro escreveu de próprio punho cada capítulo do roteiro macabro que nos impôs um luto sem data para terminar. Nada foi por acaso. Em 28 de março do ano passado, quando o país contava apenas 114 mortos pela Covid-19, o presidente foi alertado pelo então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, para a gravidade da pandemia e seus efeitos devastadores. Na época, a pior projeção previa 180 mil mortos, caso não fossem tomadas as medidas necessárias. Àquela altura, era plenamente possível evitar o pior. Bolsonaro ignorou o alerta. Continuou agindo como sempre: desprezou máscaras, provocou aglomerações, atacou medidas de isolamento social decretadas por governadores e prefeitos, menosprezou a pandemia — era “só uma gripezinha” — e desdenhou as mortes que não paravam de crescer. Ressoa até hoje seu indiferente “e daí?” diante da tragédia.

No pronunciamento em rede nacional na terça-feira, abafado por panelaços nas capitais, tentou adotar um tom mais sóbrio. Mas continuou a mentir e a distorcer dados para exaltar as ações do governo. “Quero tranquilizar o povo brasileiro e afirmar que as vacinas estão garantidas”, afirmou. “Ao final do ano, teremos alcançado mais de 500 milhões de doses para vacinar toda a população. Muito em breve retomaremos nossa vida normal.” No mesmo dia, o Ministério da Saúde anunciou a redução de quase dez milhões nas doses previstas para abril, de 57,1 milhões para 47,3 milhões.

Em dois meses de campanha, o país aplicou a primeira dose a pouco mais de 6% da população. De acordo com os dados disponíveis até a última semana para 103 países na plataforma Our World in Data, esse percentual nos coloca na 54ª posição no quesito “proporção da população que tomou ao menos uma dose da vacina”. Nem de longe o que prega a propaganda bolsonarista, na tentativa de eximir o presidente da responsabilidade pela condução desastrosa do combate à pandemia.

Bolsonaro trocou dois ministros da Saúde — os médicos Mandetta e Nelson Teich — pelo general Eduardo Pazuello, cujo único predicado era obedecer-lhe na fixação em adotar um remédio comprovadamente ineficaz contra a doença, a cloroquina. Não tinha como dar certo. Acaba de assumir o quarto ministro na pandemia, o cardiologista Marcelo Queiroga, apresentado ontem a sua primeira crise: o Ministério da Saúde mudou os critérios para registro das mortes e, num passe de mágica, os números despencaram. O governo só voltou atrás depois da grita dos estados.

No Planalto, ainda se procura um cargo para Pazuello, investigado pela tragédia de Manaus, onde pacientes morreram por falta de oxigênio. Os equívocos e as omissões da dupla Bolsonaro & Pazuello ficaram explícitos na atitude diante das vacinas. O governo fez tudo errado. Por omissão, viu-se refém do acordo assinado pela Fiocruz para produzir a vacina da AstraZeneca. Desprezou a oferta da Pfizer em agosto para comprá-la somente agora. Acordou tarde para outros imunizantes. A vacina que sustenta o claudicante Programa Nacional de Imunização é a chinesa CoronaVac, que Bolsonaro torpedeou por ter sido contratada por um adversário, o governador João Doria.

O resultado da gestão inepta é que faltam vacinas, enquanto o vírus e suas variantes fazem a festa. O cenário é caótico. Hospitais entram em colapso, doentes morrem nas filas de espera, faltam oxigênio e sedativos para entubar pacientes, corpos se amontoam em corredores. A pandemia pode até acabar, mas as sequelas durarão anos. Famílias perderam seus provedores, crianças ficaram órfãs, pais e mães enterraram prematuramente seus filhos. Trezentas mil mortes — muitas evitáveis — não podem ficar impunes. Quem será responsabilizado por isso? É preciso que Ministério Público, comissões parlamentares e demais órgãos de controle investiguem as responsabilidades de cada um nessa tragédia sem precedentes.

Por que não se seguiram as recomendações científicas? Por que não foram tomadas as medidas de restrição sabidamente eficazes para conter o vírus? Por que não se testou em massa a população, como fizeram os países que controlaram a epidemia? Por que o Ministério da Saúde abriu mão de coordenar o combate à doença? Por que se desperdiçaram dinheiro e energia com medicamentos inócuos? Por que não foram compradas vacinas a tempo de imunizar a população e salvar centenas de milhares de vidas?

Só ontem, depois de um ano e 300 mil mortes, Bolsonaro anunciou a criação de um comitê nacional para coordenar o combate ao vírus. Ficou claro no discurso do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que a paciência até dos aliados com os erros está no fim. Que este momento, em que Bolsonaro passou a defender a vacinação e aparenta ter caído em si, marque enfim a guinada no combate à pandemia e a adesão a políticas embasadas na Ciência, para que não tenhamos mais de chorar milhares de mortos todo dia.

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O presidente busca um álibi

Por Míriam Leitão, O Globo, 25/3/2021

Trezentos mil mortos são uma derrota coletiva tão avassaladora que o país não sabe mais medir, não tem palavras para qualificar. Existe apenas esse luto sobre nós, dia após dia. O que o presidente Bolsonaro fez ontem foi pouco, tarde e enganoso. Ele busca um álibi. Tenta montar uma rota de fuga e chamou quem pode lhe dar cobertura. Convidou apenas os governadores que lhe são próximos. Não convidou o Butantan e a Fiocruz. Os presidentes da Câmara e do Senado podem estar sinceramente envolvidos na missão, o novo ministro pode melhorar o clima no governo, mas a verdade é que o presidente jamais vai liderar um bom plano de coordenação da crise. Porque ele não quer e não sabe.

A reunião de ontem no Planalto foi excludente. Bolsonaro escolheu a dedo os coadjuvantes do seu teatro. Não estava sendo sincero quando disse: “a vida em primeiro lugar”. E isso é possível garantir com base em todas declarações feitas durante um ano inteiro.

A ideia de união contra a crise não tem coerência mínima com o que o presidente fala e faz. Para citar apenas três atos dos últimos dias. Ele encontrou com um grupo de pessoas aglomeradas em frente ao Alvorada, para festejar seu aniversário. Distribuiu fatias de bolo e ameaças de golpe. Um dia depois, declarou que ninguém o havia convencido de que estava errado. Dias antes, havia entrado no Supremo com uma ação contra três governadores, propósito no qual fracassou.

A mudança do presidente é uma encenação. O novo chefe da Secom, o almirante Flávio Rocha, deu outra orientação para a desastrosa comunicação do presidente. Ter um militar, e da ativa, nesse posto é sinal de que as Forças Armadas aceitam se afundar mais um pouco nesse pântano que é o governo Bolsonaro. O primeiro ato dessa gestão foi a oferta sortida de mentiras em horário nobre. O pronunciamento de terça-feira é de fazer corar Pinóquio. “Somos incansáveis na luta contra o coronavírus”, disse o presidente. O mesmo do “e dai?”, do “vai comprar vacina na casa da sua mãe”, o que acusou a imprensa de “histeria” e promoveu incontáveis aglomerações. Bolsonaro nunca lutou contra o coronavírus. Ele agrediu os gestores públicos que o fizeram.

Ontem, era para mostrar que quer combater a pandemia, mas ele não resistiu. “Tratamos também da possibilidade do tratamento precoce, isso fica a cargo do ministro da Saúde, que respeita o direito e o dever do médico off label de tratar os infectados”. Deixando de lado a má construção da frase, o que fica claro é que tratou todos os presentes fora da bula. Não eram líderes de outros poderes. Eram figurantes aceitando o presidente prescrever o oposto do que recomendou, na terça, a Associação Médica Brasileira. Aliás, como demorou a AMB.

Tratamento precoce, como se sabe, é o codinome do charlatanismo, do kit de ineficácia comprovada. O médico Marcelo Queiroga, na primeira entrevista que concedeu como ministro, ajudou a aliviar o ambiente pesado. Só de não haver mais aquela fala sincopada de general dando bronca em recrutas já tornou melhor o clima na entrevista coletiva. Mesmo assim, ele continua tentando se equilibrar entre duas canoas. Se ficar com a ciência, vai ter conflito com o presidente, se continuar fazendo concessões ao presidente, estará em conflito com seu diploma de médico. E ele tem feito concessões. Ontem, criticou o lockdown, apesar de admitir que a crise, desta vez, pegou o país como um todo. “Quem quer lockdown?”, perguntou. A Fiocruz, por exemplo, órgão científico do Ministério da Saúde, recomenda que o país pare por 14 dias. No fim da entrevista, ficou claro que Queiroga não fora informado de mudanças na forma de registro dos óbitos.

A atual defesa da vacinação é diferente de tudo o que Bolsonaro falou contra as vacinas, como comprovam os muitos vídeos com suas falas grosseiras. Mesmo se dermos ao presidente o imerecido benefício da dúvida, é preciso lembrá-lo de que a falta de vacina neste momento se deve exclusivamente a ele e aos erros do seu governo. O Instituto Butantan teve que brigar para produzir as vacinas que hoje encontram os braços dos brasileiros. A Fiocruz teve que superar crises diplomáticas criadas pelo governo. Bolsonaro quer mudar a cena do crime e buscar um álibi que esconda um ano de erros fatais. Erros que nos trouxeram até aqui. Aos 300 mil mortos. (Com Alvaro Gribel, de São Paulo.)

25/3/2021

Este post pertence à série de textos e compilações “Fora, Bolsonaro”. 

A série não tem periodicidade fixa.

Quatro belos artigos mostram por que é preciso tirar Bolsonaro o quanto antes. (43)

Na prática, Bolsonaro é o ministro da Saúde. Logo, as coisas só mudan quando ele sair. (42)

Chega de mimimi; Impeachment já. (41)

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