Segredo mantido

Decisão judicial não se discute, cumpre-se. Isso vale para qualquer cidadão, sob pena de enquadramento em crime de desobediência, com penas de prisão e multa. Ou não, se a ordem prejudicar o arranjo político entre o Congresso e o governo Jair Bolsonaro. Esse foi o entendimento dos presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco, e da Câmara, Arthur Lira, ao mandar às favas a determinação do STF para que o Congresso desse publicidade às emendas secretas de 2020 e 2021. Bolsonaro também faz gato e sapato do Supremo, ao se negar a detalhar seus gastos.

Tudo relativo às RP9, sigla das emendas do relator, é acintoso. O volume de recursos envolvidos – R$ 61 bilhões só neste ano – e os critérios de distribuição, privilegiando e garantindo sigilo aos parlamentares dispostos a dar apoio ao governo. Além da cereja do bolo: corrupção na execução dos empenhos, com obras e máquinas superfaturadas, irrigando campanhas eleitorais e bolsos.

Não bastasse a farta distribuição de dinheiro a aliados, a dupla Pacheco-Lira duplicou a afronta. Em ato formal conjunto replicado em uma petição dirigida ao Supremo, eles acenam com transparência só para o futuro, preservando o anonimato dos que venderam seus votos. E dão a entender que a alocação de recursos era sugerida de maneira informal, havendo “impossibilidade fática” de ter os registros dos autores das demandas.

Mas a tentativa desesperada de manter o prometido anonimato aos parlamentares beneficiados pode tornar o remendo pior do que o rasgão. Pelo argumento por eles utilizado, milhões de reais dos impostos pagos pelos cidadãos teriam sido distribuídos sem que se soubesse quem solicitou e para que destino. Haja informalidade. Haja confissão de crime.

Espera-se que os argumentos esfarrapados e mentirosos – o jornal O Estado de S. Paulo, autor da denúncia do orçamento secreto, teve acesso a planilhas nominais, com mais de 200 parlamentares beneficiados – sejam rejeitados pela Corte, sob pena de desmoralização da Justiça.

O STF, que também ordenou transparência ao Executivo e ainda não recebeu qualquer manifestação, deve reanalisar o tema ainda nesta semana devido à urgência para que questões orçamentárias relativas a 2021 sejam despachadas até o dia 3 de dezembro.

No Planalto, a resposta à proibição judicial do segredo orçamentário é o silêncio, repetindo a prática de não dar bola para exigências do STF quanto à satisfação ao público pagante sobre gastos realizados. Em 2019, o Supremo julgou uma ação de 2008, impetrada pelo então PPS, hoje Cidadania, sobre sigilo das contas presidenciais, acobertadas por um decreto militar. À época, a Corte rejeitou a premissa de “segurança” para ocultar os dados, obrigando a ampla publicidade dos dispêndios.

O governo Bolsonaro se nega a fazê-lo. Talvez porque os volumes registrados nos cartões corporativos não parem de crescer. Em 2019 superaram R$ 20 milhões, quase R$ 6 milhões a mais do que no ano anterior, números que se repetiram em 2020 e que seguem caminho idêntico neste ano. Tem-se o valor global, mas, contrariando o STF, o “por quem e em que” o dinheiro é gasto continua bem escondidinho.

No país onde o pagador de impostos é chamado de contribuinte, como se o tributo fosse opcional e não obrigatório, e os trilhões arrecadados são aplicados como favores distribuídos pelo governante de plantão, não raro em benefício próprio, os abusos com o dinheiro público – essa figura etérea que parece nascer em árvores – podem até não causar espanto. Mas seus danos são sentidos na precariedade dos serviços que o Estado tem a obrigação de prestar. Ou na ausência deles.

Parte do tecido da corrupção, os recursos secretos que custeiam a farra de alguns escancaram ainda mais a incúria com o dinheiro dos impostos, corroendo o já esgarçado crédito na coisa pública. Ao Supremo, última instância da Justiça, cabe exigir, com firmeza, o cumprimento de suas ordens. Do contrário, será considerado cúmplice desse arranjo nefasto.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 28/11/2021, 

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