Saudade de Piazzolla, do Brasil…

Houve um tempo, ali pela primeira metade dos anos 1970, o Brasil mergulhado no pior momento da ditadura militar, a Argentina ainda em um de seus períodos democráticos pré novo golpe de 1976, em que Astor Piazzolla parecia arroz de festa aqui. Houve um mês em que vi Astor Piazzola no Teatro Municipal e no Bosque da Biologia da USP.

Comprei uma imensa quantidade de LPs de Piazzolla na primeira vez em que fui a Buenos Aires, em fevereiro de 1973, com meu amigo Esdra Guimarães do Carmo, o Guiminha. Uma imensa quantidade – infelizmente, não anotei quais eram, justo eu, que sempre anotei tudo na vida, que pareço já ter nascido sabendo que verba volant, scripta manent.

Boa parte daquele rico acervo dei de presente, assim que voltei, para a namorada mais velha, mais esperta, mais safa, que estava tentando impressionar. Tenho um pouco de arrependimento disso até hoje.

Mas guardei para mim vários outros. Um deles foi Tangos!!!, assim, com três pontos de exclamação, com “Astor Piazzolla y su orquestra típica”. Constava do disco que ele havia passado por uma “reconstrucción técnica Año 1969’. Outro foi Piazzolla 1960, um LP em que o cara aparecia completamente diferente de sua persona anos 1970 e além, de terno (horroroso) e gravata, rosto bem escanhoado.

Na foto da capa, Piazzolla parecia um tangueiro tradicional, caretão – mas o som já começava a ser subversivo, já avançava, já começava a explorar novos limites. Meio assim como – seguindo as pistas dadas por Mário Reis aqui no Brasil, por Fred Astaire, por Henri Salvador – João Gilberto havia feito com a música popular brasileira, e Caetano e Gil fariam mais ainda, um pouco depois.

Piazzolla 1960, que carreguei de volta ao fim daquela sensacional viagem, em março de 1973, já trazia “Adios Noniño”.

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Quando Astor Piazzolla virou arroz de festa e toda hora aparecia em São Paulo, fosse no Municipal, fosse no Bosque da Biologia, estava casado com Amelita Baltar, e diabo, como eu adorei (e adoro até hoje) aquela mulher!

Piazzolla é basicamente, fundamentalmente, música iletrada, como eu costumo dizer. Mas ele sempre soube ser também, com o mesmo brilho, o autor de música para letra.

Creio que o casamento artístico de Piazzolla com Amelita Baltar foi quando encenaram a ópera-tango Maria de Buenos Aires, em 1968. O poeta Horácio Ferrer, autor do libreto e das letras todas, foi, acho, o padrinho do casamento.

Fizeram um disco antológico, histórico, maravilhoso, assombrosamente belo. Tem o título mais óbvio possível – Amelita Baltar interpreta a Piazzolla y Ferrer –, e tudo nele é o menos óbvio que pode haver. É tudo absolutamente surpreendente, forte, impactante, lindo. Sete faixas – três com “Preludio” no título, três com “Balada”, todas com o bandoneón glorioso do maestro, e a voz poderosa, abrangemte, ampla, teatral, de Amelita.

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Além deste Amelita Baltar interpreta a Piazzolla y Ferrer e do álbum que ele divide com o saxofonista e compositor Gerry Mulligan, os discos de Piazzolla que mais admiro são os dois Astor Piazzollas/Conjunto 9, Musica Popular Contemporãnea de la Ciudad de Buenos Aires, da RCA Victor, do início dos anos 70. Os que têm aquelas coisas maravilhosas, “Oda para um Hippie”, “Onda Nueve”, “Verano Porteño” – aqueles em que mais Piazzolla batia no seu bandoneón com a mão como se fosse também um instrumento de percussão.

Preciso rever Toda Nudez Será Castigada, que Arnaldo Jabor fez em 1973. Jabor enfiou na tragédia carioca de Nelson Rodrigues estrelada por aquela maravilhosa Darlene Glórtia que anos antes trabalhava numa boate-puteiro da Rua Nestor Pestana os acordes ferozes de composições de Piazzolla nos dois volumes de Musica Contemporânea de la Ciudad de Buenos Aires. Deu certíssima a inusitada mistura da música de Buenos Aires com as paisagens da Zona Sul do Rio de Janeiro.

Piazzolla visitou mais uma vez o Brasil em uma gravação bem pouco conhecida de Ney Matogrosso, logo após a extinção dos Secos & Molhados. Num compacto que vinha como brinde do primeiro álbum solo de Ney estava “Las Islas”, uma louca junção de um poema de Jorge Luís Borges com música do maestro.

Coisa de louco.

Gente de bem anda com gente de bem, wherever they are, e então Astor Piazzolla fez uma canção para Georges Moustaki, “Faire Cette Chanson”. Era uma música com um jeito forte de poncho & conga, um amor ao sonho de que nuestra America Latina começasse a ser verdadeira, fresca como uma canção, como dizia a letra de outra música cantada por Amelita, “Violetas Populares”, em homenagem a Violeta Parra e à revolução socialista que um dia teria que chegar.

A letra de Mario Trejo em cima da melodia belíssima de Piazzolla terminava assim:

Y en el final, Compañera

De esta milonga Argentina

Nuestra América Latina

Comience a ser verdadera

Si larga ha sido la espera

Violeta sangre quemada

Los tigres de tu mirada,

Ya estan rugiendo Victoria

Porque ya ha entrado en la historia

La Gran Patria Liberada…

Poucos dias depois do aniversário de 100 anos do nascimento do maestro Astor Piazzolla, em 11 de março, os jornais noticiaram que nuestra América Latina, com 8,5% da população mundial, tinha um terço das mortes pela Covid-19 registradas no planeta, e apenas 6% dos vacinados.

Nuestra América Latina muitas vezes aparece como a latrina do mundo.

No entanto, quando a gente vê no YouTube um trecho de um dos programas “Chico e Caetano”, que a Rede Globo apresentou em meados dos anos 80, um trecho em que Chico Buarque e Caetano Veloso apresentam Astort Piazzolla, e o maestro toca no Teatro Phoenix, na Zona Sul do Rio, diante de uma platéia de convidados e dos dois mais geniais dos compositores da música popular brasileira das últimas muitas décadas, é inevitável que a gente suspire profundamente, profundamente.

E se pergunte onde foi que nos perdemos.

Março e abril de 2021

As fotos do show de Astor Piazzolla e Amelita Baltar no Bosque da Biologia da USP são minhas, é claro.

3 Comentários para “Saudade de Piazzolla, do Brasil…”

  1. Que tempos!
    Não vi Piazzolla em São Paulo, mas vi em Porto Alegre, na sua última vinda ao Brasil, antes de sofrer aquele AVC que o tirou de nós. E tenho todos esses discos que mencionaste. E algumas fitas cassete, de ensaios domésticos. E vídeos. E DVDs. E CDs, claro. E muitos dos filmes com trilha sonora dele, “Toda Nudez…” inclusive.
    Teu texto me traz uma euforia imensa! Como o cálice do melhor vinho, como um cachecol macio num dia frio, como a imagem do mar ao entardecer. Vou roubar estas fotos prá enriquecer minha coleção, permites?

  2. Mas é óbvio que permito, Alexia caríssima!
    Com o crédito, hein? Foto Sérgio Vaz!
    Obrigado pelo comentário delicioso e gentil.
    Um abraço.
    Sérgio

  3. SV, vc não brinca em serviço, ou melhor, não briga com sua memória e nos brinda com seu talento excelentísimo de nos entregar com seus textos o conhecimento que acumulaste (ops), em especial, nas áreas da música e do cinema. Demais da conta, como se diz na nossa Minas Gerais. Invejo, construtivamente, seu acerto na escolha de caminhos que nos levam à constatação de que a vida é bela. Um abraço, extensivo à sua companheira Mary.

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